{"id":45729,"date":"2024-12-22T17:25:00","date_gmt":"2024-12-22T20:25:00","guid":{"rendered":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/as-bombas-que-matam-centenas-de-criancas-na-india-pensamos-que-era-uma-bola\/"},"modified":"2024-12-22T17:25:00","modified_gmt":"2024-12-22T20:25:00","slug":"as-bombas-que-matam-centenas-de-criancas-na-india-pensamos-que-era-uma-bola","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/as-bombas-que-matam-centenas-de-criancas-na-india-pensamos-que-era-uma-bola\/","title":{"rendered":"As bombas que matam centenas de crian\u00e7as na \u00cdndia: ‘Pensamos que era uma bola’"},"content":{"rendered":"

Mas o que s\u00e3o estes dispositivos mortais, e como eles est\u00e3o ligados \u00e0 viol\u00eancia pol\u00edtica em Bengala Ocidental? E por que tantas crian\u00e7as bengalis est\u00e3o pagando o pre\u00e7o? Em uma manh\u00e3 ensolarada de ver\u00e3o, em maio de 1996, seis meninos de uma favela em Calcut\u00e1, capital do Estado indiano de Bengala Ocidental, sa\u00edram para jogar cr\u00edquete em um beco estreito. A comunidade deles, situada no bairro de classe m\u00e9dia de Jodhpur Park, transbordava de vida. Era feriado \u2014 dia de vota\u00e7\u00e3o em uma elei\u00e7\u00e3o geral. Aos nove anos, Puchu Sardar, um dos meninos, pegou um taco de cr\u00edquete e passou sorrateiramente pelo pai que estava dormindo. Logo, o barulho do taco batendo na bola ecoou pelo beco. A bola rebatida para fora dos limites do campo improvisado fez com que os meninos a procurassem em um pequeno jardim pr\u00f3ximo. L\u00e1, dentro de um saco pl\u00e1stico preto, encontraram seis objetos redondos. Pareciam bolas de cr\u00edquete que algu\u00e9m havia deixado para tr\u00e1s, e os meninos voltaram a jogar com o esp\u00f3lio. Uma das “bolas” que estavam no saco foi arremessada para Puchu, que a acertou com seu taco. Uma explos\u00e3o ensurdecedora atravessou o beco. Era uma bomba. Quando a fuma\u00e7a se dissipou, e os vizinhos correram para fora, encontraram Puchu e seus cinco amigos esparramados na rua, com a pele escurecida, as roupas queimadas e os corpos dilacerados. Os gritos tomaram conta do caos. Raju Das, de sete anos, um \u00f3rf\u00e3o criado pela tia, e Gopal Biswas, de sete anos, morreram em decorr\u00eancia dos ferimentos. Os outros quatro meninos ficaram feridos. Puchu sobreviveu por pouco, tendo sofrido queimaduras graves e ferimentos por estilha\u00e7os no peito, rosto e abd\u00f4men. Ele passou mais de um m\u00eas no hospital. Quando voltou para casa, teve que usar uma pin\u00e7a de cozinha para remover os estilha\u00e7os que ainda estavam alojados em seu corpo, porque sua fam\u00edlia n\u00e3o tinha mais dinheiro para pagar por seu tratamento m\u00e9dico. Puchu e seus amigos fazem parte de uma longa e tr\u00e1gica lista de crian\u00e7as mortas ou mutiladas por bombas rudimentares, que t\u00eam sido usadas em Bengala Ocidental h\u00e1 d\u00e9cadas em uma batalha sangrenta pelo dom\u00ednio da pol\u00edtica violenta do Estado. N\u00e3o h\u00e1 dados dispon\u00edveis publicamente sobre o n\u00famero de crian\u00e7as mortas por bombas rudimentares em Bengala Ocidental. Por isso, a BBC analisou todas as edi\u00e7\u00f5es de dois importantes jornais do Estado \u2014 Anandabazar Patrika e Bartaman Patrika \u2014 de 1996 a 2024, procurando not\u00edcias de crian\u00e7as feridas ou mortas por estes dispositivos. Encontramos pelo menos 565 v\u00edtimas infantis \u2014 94 mortas e 471 feridas \u2014 at\u00e9 10 de novembro. Isso significa que, em m\u00e9dia, uma crian\u00e7a foi v\u00edtima da viol\u00eancia das bombas rudimentares a cada 18 dias. Mas a BBC descobriu incidentes em que crian\u00e7as foram feridas por artefatos rudimentares que n\u00e3o foram noticiados pelos dois jornais, de modo que o n\u00famero real de v\u00edtimas provavelmente \u00e9 maior. Mais de 60% destes incidentes envolveram crian\u00e7as brincando ao ar livre \u2014- jardins, ruas, fazendas e at\u00e9 mesmo perto de escolas \u2014, onde bombas, normalmente usadas durante as elei\u00e7\u00f5es para aterrorizar os advers\u00e1rios, estavam escondidas. A maioria das v\u00edtimas com quem a BBC conversou era pobre, filhos de trabalhadores dom\u00e9sticos, biscateiros ou trabalhadores agr\u00edcolas. A hist\u00f3ria revolucion\u00e1ria das bombas em Bengala Ocidental Bengala Ocidental, o quarto maior Estado da \u00cdndia, com uma popula\u00e7\u00e3o de mais de 100 milh\u00f5es de habitantes, sofre h\u00e1 muito tempo com a viol\u00eancia pol\u00edtica. Ao longo dos anos, desde a independ\u00eancia da \u00cdndia em 1947, o Estado passou por diferentes governos \u2014 sendo comandado pelo Partido do Congresso por duas d\u00e9cadas, a Frente de Esquerda liderada pelos comunistas por tr\u00eas, e o atual Congresso Trinamool desde 2011. No fim da d\u00e9cada de 1960, o Estado foi assolado por um conflito armado entre os rebeldes mao\u00edstas \u2014 tamb\u00e9m chamados de naxalitas \u2014 e as for\u00e7as do governo. Um elemento comum a todos os governos e conflitos rebeldes desde ent\u00e3o tem sido o uso de bombas como ferramentas de intimida\u00e7\u00e3o pelos partidos pol\u00edticos para silenciar os oponentes, especialmente durante as elei\u00e7\u00f5es. “Bombas t\u00eam sido [usadas para acertos de contas]. Isso vem ocorrendo em Bengala h\u00e1 muito tempo, h\u00e1 mais de 100 anos”, afirmou \u00e0 BBC Pankaj Dutta, ex-inspetor geral da pol\u00edcia de Bengala Ocidental. As bombas rudimentares de hoje em Bengala Ocidental s\u00e3o amarradas com cordas de juta e recheadas com estilha\u00e7os, como pregos, porcas e vidro \u2014 Foto: Ronny Sen para a BBC A fabrica\u00e7\u00e3o de bombas em Bengala tem suas ra\u00edzes na rebeli\u00e3o contra o dom\u00ednio brit\u00e2nico no in\u00edcio do s\u00e9culo 20. As primeiras tentativas foram rudimentares, e os acidentes eram comuns: um rebelde perdeu uma m\u00e3o, e outro morreu ao testar uma bomba. At\u00e9 que um rebelde voltou da Fran\u00e7a munido da habilidade de fabricar bombas. Seu livro-bomba \u2014 um livro jur\u00eddico carregado de explosivos escondido dentro de uma lata de cacau da marca Cadbury \u2014 teria matado seu alvo, um magistrado brit\u00e2nico, se ele o tivesse aberto. A primeira explos\u00e3o abalou o distrito de Midnapore em 1907, quando revolucion\u00e1rios descarrilaram um trem que transportava um alto funcion\u00e1rio brit\u00e2nico colocando uma bomba nos trilhos. Alguns meses depois, uma tentativa fracassada de matar um magistrado em Muzaffarpur com uma bomba lan\u00e7ada contra uma carruagem puxada por cavalos, tirou a vida de duas mulheres inglesas. O ato, descrito por um jornal como uma “tremenda explos\u00e3o que assustou a cidade”, transformou um adolescente rebelde chamado Khudiram Bose em um m\u00e1rtir \u2014 e no primeiro “combatente pela liberdade” no pante\u00e3o dos revolucion\u00e1rios indianos. Bal Gangadhar Tilak, um l\u00edder nacionalista, escreveu em 1908 que as bombas n\u00e3o eram apenas armas, mas um novo tipo de “conhecimento m\u00e1gico”, uma “bruxaria” que se espalhou de Bengala para o resto da \u00cdndia. Atualmente, as bombas rudimentares de Bengala s\u00e3o conhecidas localmente como peto. Elas s\u00e3o amarradas com cordas de juta e recheadas com estilha\u00e7os de pregos, porcas e vidro. As varia\u00e7\u00f5es incluem explosivos embalados em recipientes de a\u00e7o ou garrafas de vidro. Elas s\u00e3o usadas principalmente em confrontos violentos entre partidos pol\u00edticos rivais. Os ativistas pol\u00edticos, sobretudo nas \u00e1reas rurais, usam essas bombas para intimidar os oponentes, perturbar as se\u00e7\u00f5es eleitorais ou realizar retalia\u00e7\u00f5es contra supostos inimigos. Elas costumam ser usadas durante as elei\u00e7\u00f5es para sabotar as cabines de vota\u00e7\u00e3o ou para afirmar o controle sobre as \u00e1reas. Crian\u00e7as como Poulami Halder sofrem o impacto dessa viol\u00eancia. Em uma manh\u00e3 de abril de 2018, a menina, ent\u00e3o com sete anos, estava colhendo flores para as ora\u00e7\u00f5es matinais em Gopalpur, um vilarejo no distrito de 24 Parganas Norte, repleto de lagos, arrozais e coqueiros. Faltava apenas um m\u00eas para as elei\u00e7\u00f5es para o conselho do vilarejo. Poulami viu uma “bola” perto da bomba de \u00e1gua de um vizinho. “Peguei e levei para casa”, ela recorda. Quando ela entrou, seu av\u00f4, que estava tomando ch\u00e1, congelou ao ver o objeto na m\u00e3o dela. “Ele disse: ‘N\u00e3o \u00e9 uma bola, \u00e9 uma bomba! Jogue fora! Antes que eu pudesse reagir, ela explodiu na minha m\u00e3o.” A explos\u00e3o abalou a tranquilidade do vilarejo. Poulami foi atingida nos “olhos, no rosto e nas m\u00e3os” e desmaiou, enquanto o caos irrompia ao seu redor. “Me lembro de pessoas correndo na minha dire\u00e7\u00e3o, mas eu conseguia ver muito pouco. Fui atingida por todos os lados.” Os moradores a levaram \u00e0s pressas para o hospital. Seus ferimentos foram devastadores \u2014 sua m\u00e3o esquerda foi amputada, e ela passou quase um m\u00eas no hospital. Uma rotina matinal comum havia se transformado em um pesadelo, mudando para sempre a vida de Poulami com um \u00fanico momento avassalador. Poulami n\u00e3o est\u00e1 sozinha. Sabina Khatun tinha 10 anos quando uma bomba rudimentar explodiu na m\u00e3o dela em abril de 2020, em Jitpur, um vilarejo cercado por campos de arroz e de juta no distrito de Murshidabad. Ela estava levando sua cabra para pastar quando se deparou com a bomba na grama. Curiosa, pegou o artefato e come\u00e7ou a brincar com ele. Momentos depois, detonou nas m\u00e3os dela. “No momento em que ouvi a explos\u00e3o, pensei: Quem vai ficar incapacitado desta vez? Ser\u00e1 que Sabina foi mutilada?”, relembra a m\u00e3e dela, Ameena Bibi, com a voz repleta de ang\u00fastia. “Quando sa\u00ed, vi pessoas carregando Sabina nos bra\u00e7os. A carne era vis\u00edvel na m\u00e3o dela.” Os m\u00e9dicos foram obrigados a amputar a m\u00e3o de Sabina. Desde que voltou para casa, ela tem lutado para reconstruir sua vida, e seus pais est\u00e3o desesperados diante de um futuro incerto. Seus temores n\u00e3o s\u00e3o injustificados: na \u00cdndia, as mulheres com defici\u00eancia geralmente enfrentam um estigma social que dificulta suas perspectivas de casamento e emprego. “Minha filha n\u00e3o parava de chorar, dizendo que nunca mais teria a m\u00e3o de volta”, conta Ameena. “Eu a consolava, dizendo: ‘Sua m\u00e3o vai voltar a crescer, seus dedos v\u00e3o voltar a crescer’.” Sabina, assim como Poulami, aprendeu a andar de bicicleta com uma m\u00e3o s\u00f3 \u2014 e sonha em ser professora \u2014 Foto: Ronny Sen para a BBC Agora, Sabina enfrenta a perda da m\u00e3o e a dificuldade de realizar tarefas simples cotidianas. “Tenho dificuldade para beber \u00e1gua, comer, tomar banho, me vestir, ir ao banheiro”, enumera. Mutiladas por bombas, mas com a sorte de terem sobrevivido, essas crian\u00e7as tiveram suas vidas mudadas para sempre. Poulami, agora com 13 anos, recebeu uma m\u00e3o artificial, mas n\u00e3o conseguiu us\u00e1-la \u2014 era muito pesada e rapidamente n\u00e3o coube mais. Sabina, de 14 anos, tem problemas de vis\u00e3o. Sua fam\u00edlia diz que ela precisa de outra cirurgia para remover detritos da bomba dos olhos, mas eles n\u00e3o t\u00eam condi\u00e7\u00f5es de pagar. Puchu, hoje com 37 anos, foi retirado da escola pelos pais temerosos \u2014 e passou anos se recusando a sair de casa, muitas vezes se escondendo debaixo da cama ao menor barulho. Ele nunca mais pegou em um taco de cr\u00edquete. Com a inf\u00e2ncia roubada, ele agora est\u00e1 sobrevivendo de biscates na \u00e1rea de constru\u00e7\u00e3o e carrega as cicatrizes de seu passado. Mas nem toda esperan\u00e7a est\u00e1 perdida. Poulami e Sabina aprenderam a andar de bicicleta com uma m\u00e3o s\u00f3 \u2014 e continuam frequentando a escola. Ambas sonham em se tornar professoras. Puchu espera que seu filho, Rudra, de cinco anos, tenha um futuro melhor \u2014 como policial. Apesar do pre\u00e7o terr\u00edvel que inflige, n\u00e3o h\u00e1 sinal de que a viol\u00eancia das bombas rudimentares em Bengala Ocidental esteja acabando. Nenhum dos partidos pol\u00edticos admite usar bombas para obter ganhos pol\u00edticos. Quando a BBC perguntou aos quatro principais partidos pol\u00edticos de Bengala Ocidental se eles estavam envolvidos, diretamente ou por meio de intermedi\u00e1rios, na fabrica\u00e7\u00e3o ou no uso de bombas rudimentares, o Congresso Trinamool (TMC), que est\u00e1 no poder, e o Partido Bharatiya Janata (BJP), da oposi\u00e7\u00e3o, n\u00e3o responderam. O Partido Comunista da \u00cdndia (Marxista) negou veementemente seu envolvimento, dizendo que estava “comprometido com a defesa do Estado de direito… e que, quando se trata de proteger direitos e vidas, as crian\u00e7as s\u00e3o a maior preocupa\u00e7\u00e3o”. O Partido do Congresso Nacional Indiano (INC) tamb\u00e9m negou veementemente o uso de bombas rudimentares para obter vantagens eleitorais, e disse que “nunca se envolveu em qualquer viol\u00eancia para obter ganhos pol\u00edticos ou pessoais”. Embora nenhum partido pol\u00edtico admita responsabilidade, nenhum dos especialistas que conversaram com a BBC tem d\u00favidas de que esta carnificina est\u00e1 enraizada na cultura de viol\u00eancia pol\u00edtica de Bengala. “Durante qualquer elei\u00e7\u00e3o importante aqui, voc\u00ea vai ver o uso desenfreado de bombas”, afirmou Pankaj Dutta. “Est\u00e1 acontecendo um abuso extremo da inf\u00e2ncia. \u00c9 uma falta de cuidado por parte da sociedade.” Dutta faleceu em novembro. Poulami acrescenta: “Aqueles que colocaram as bombas ainda est\u00e3o livres. Ningu\u00e9m deve deixar bombas espalhadas por a\u00ed. Nenhuma crian\u00e7a deve ser prejudicada desta forma novamente.” ‘Veja o que fizeram com meu filho’ Em maio deste ano, no distrito de Hooghly, tr\u00eas meninos que brincavam perto de um lago encontraram, sem saber, um esconderijo de bombas. A explos\u00e3o matou Raj Biswas, de nove anos, e deixou seu amigo mutilado, sem um bra\u00e7o. O outro menino escapou com fraturas nas pernas. “Veja o que fizeram com meu filho”, disse chorando o pai de Raj, enquanto acariciava a testa do filho morto. Enquanto o corpo de Raj era sepultado, era poss\u00edvel ouvir slogans pol\u00edticos sendo entoados em um com\u00edcio eleitoral pr\u00f3ximo: “Salve Bengala!”, gritava a multid\u00e3o, “Salve Bengala!” Era \u00e9poca de elei\u00e7\u00f5es. E, mais uma vez, as crian\u00e7as estavam pagando o pre\u00e7o. <\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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