{"id":42869,"date":"2024-11-28T17:00:00","date_gmt":"2024-11-28T20:00:00","guid":{"rendered":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/dorival-morreu-como-o-lorde-que-sempre-foi\/"},"modified":"2024-11-28T17:00:00","modified_gmt":"2024-11-28T20:00:00","slug":"dorival-morreu-como-o-lorde-que-sempre-foi","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/dorival-morreu-como-o-lorde-que-sempre-foi\/","title":{"rendered":"Dorival morreu como o lorde que sempre foi"},"content":{"rendered":"

Quando desembarquei no aeroporto de Cumbica, voltando do Festival de Cinema de Veneza, passei sem pressa pelo free shop. Meio zonza com a mistura de perfumes, chocolates, eletr\u00f4nicos, lingeries, bebidas e cosm\u00e9ticos, s\u00f3 conseguia pensar se precisava mesmo de alguma daquelas coisas. N\u00e3o ia ter ningu\u00e9m me esperando. Afinal, a \u00fanica pessoa que poderia fazer isso \u2014um gesto que considero apenas desconfort\u00e1vel\u2014 seria meu marido. Mas, logo nos primeiros anos de casamento, combinamos de abolir essa liturgia. Economizamos muitos sorrisos for\u00e7ados, noites interrompidas e longos trajetos ao aeroporto. Acabei fazendo uma comprinha naquela manh\u00e3: quatro latas de sardinhas portuguesas, para os gatos da fam\u00edlia. Dorival, o meu gato mais velho, e Mimi, Pitu e Ida, os mais novos, com tr\u00eas, dois e um ano, respectivamente. Ia arrasar chegando em casa com presentes. Mas assim que as portas autom\u00e1ticas do desembarque se abriram, vi meu marido. E, se ele estava ali, s\u00f3 podia ser porque o Dorival n\u00e3o estava mais. Nada precisou ser dito. Dorival, Dod\u00f4, Duli e tantos outros apelidos, tinha 18 anos e meio e um cora\u00e7\u00e3o enfraquecido, que fazia com que sua cavidade pulmonar acumulasse l\u00edquido, dificultando a respira\u00e7\u00e3o. Eram cada vez mais frequentes as idas ao PS veterin\u00e1rio. Para a drenagem, uma agulha de 10 cent\u00edmetros era enfiada entre as costelas dele, e sacolas cheias de l\u00edquido fosco sa\u00edam l\u00e1 de dentro. Ele nunca reclamava, nunca dificultava o trabalho de quem fazia o procedimento. Voltava da sala de cirurgia aliviado e carregado, invariavelmente, por uma veterin\u00e1ria encantada por ele. Conheci o Dorival em 2006, em Washington, onde mor\u00e1vamos. Foi no mesmo ano em que decidimos ter filhos. O plano inicial era hospedar uma gatinha com ninhada, para acostumar a casa com nen\u00e9ns. Mas, no dia em que visitei a Humane Society, dei de cara com Licorice, como batizaram o meu gatinho, encontrado com menos de tr\u00eas meses, revirando um lixo. Pedi para v\u00ea-lo de perto, peguei-o no colo, e ele dormiu de barriga para cima. Foi uma paix\u00e3o imediata e avassaladora. Licorice virou Dorival. N\u00e3o por causa de Caymmi, mas em homenagem a um personagem do J\u00f4 Soares, cuja gra\u00e7a talvez n\u00e3o ca\u00edsse bem nos dias de hoje. “Dorival, meu filho, \u00e9 uma fera”, dizia o J\u00f4. “Tem pai que \u00e9 cego”, comentava o ator Paulo Silvino, seu ‘side kick\u2019 na esquete. A conviv\u00eancia com o meu Dorival foi a prova definitiva de que amor \u00e0 primeira vista pode, sim, durar para sempre. Eu sabia que ele estava morrendo, e sabia que a morte dele estava no pacote \u2018adotar um bicho’. N\u00e3o \u00e9 como ter filhos. Os filhos, se tudo der certo, sofrer\u00e3o a perda dos pais. Tem gente que diz at\u00e9 que ter bicho \u00e9 bom por isso mesmo, treina a gente a lidar com a perda. E que a melhor coisa a se fazer quando morre um bicho \u00e9 pegar outro, para substitu\u00ed-lo. N\u00e3o h\u00e1 muito o que possa ser dito diante da ignor\u00e2ncia humana. Mas, tamb\u00e9m, n\u00e3o tem como consertar essa ignor\u00e2ncia, t\u00edpica do resto do mundo, que n\u00e3o conviveu com o Dorival. O meu Dorival, esse sim, era \u00edmpar. E agora fiquei eu aqui, tentando empurrar com a barriga essa minha vida sem ele. Rodeada de gente, de outros gatos, muitas coisas a fazer, uma lista que parece aumentar a cada dia que passa, o tempo que n\u00e3o para de acelerar. Tudo t\u00e3o parado. Tudo t\u00e3o vazio. LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo. <\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Quando desembarquei no aeroporto de Cumbica, voltando do Festival de Cinema de Veneza, passei sem pressa pelo free shop. Meio zonza com…<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":42870,"comment_status":"closed","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"footnotes":""},"categories":[31,1],"tags":[],"class_list":["post-42869","post","type-post","status-publish","format-standard","has-post-thumbnail","hentry","category-comunidade","category-todas-noticias"],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/42869","targetHints":{"allow":["GET"]}}],"collection":[{"href":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=42869"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/42869\/revisions"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media\/42870"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=42869"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=42869"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/tvdescalvado.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=42869"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}