Noite de primavera. Abafada. Caminho vagarosamente pela pequenina Sebasti\u00e3o Velho, em Pinheiros. Sinto o doce cheiro de uma dama da noite no ar. Tiro os fones do ouvido e passo a ouvir o estalar dos pneus dos carros sob os paralelelp\u00edpedos. Desapercebidos entre grandes vias como Teodoro Sampaio e\u00a0 Pedroso de Moraes, os dois quarteir\u00f5es da rua s\u00e3o um o\u00e1sis de calmaria. Finalmente avisto pequenas luzes amarelas. Um burburinho se forma na cal\u00e7ada. Paro em frente a uma diminuta garagem. Nela funciona o Jarro. Um botequinho descompromissado. Atr\u00e1s de sua portinha, onde mal caberia um destes modernos e grandalh\u00f5es SUVs, est\u00e3o o balc\u00e3o, geladeiras, algumas traquitanas nas paredes e uma vigorosa churrasqueira. \u00c9 da grelha que saem freneticamente dezenas e dezenas de espetos, a especialidade da casa.\u00a0 No card\u00e1pio h\u00e1 25 op\u00e7\u00f5es. Entre os tradicionais espetos de carne, kafta, queijo coalho, lingui\u00e7a h\u00e1 alguns bacanudos como panceta, medalh\u00e3o, jacar\u00e9, pintado ou o salsich\u00e3o com provolone, que \u00e9 servido com uma mostarda alem\u00e3. Os amigos veganos tamb\u00e9m t\u00eam o seu espa\u00e7o reservado na grelha: abobrinha, milho, cogumelos e ainda uma por\u00e7\u00e3o de legumes, que \u00e9 bem gostosa. Mas, enquanto abro uma cerveja gelad\u00edssima, saboreio meu espeto preferido do Jarro, o de lombo! (R$ 11) A carne \u00e9 macia, tenra, sem tempero exagerado, caracter\u00edstica comum aos espetinhos de festas e convescotes por a\u00ed afora. Espremo umas gotinhas de lim\u00e3o. Ainda brinco com a farofinha, creme de alho e vinagrete que acompanham o espeto, servidos delicadamente em canequinhas de \u00e1gata. FEN\u00d4MENO DAS GARAGENS\u00a0 Os neg\u00f3cios abertos em garagens s\u00e3o um verdadeiro fen\u00f4meno nos abastados bairros da zona oeste. Em Pinheiros h\u00e1 muitos pr\u00e9dios antigos, que sobrevivem desde a urbaniza\u00e7\u00e3o do bairro no s\u00e9culo 20. S\u00e3o constru\u00e7\u00f5es pequenas comparadas \u00e0s gigantescas torres que invadem o bairro. Nesses predinhos, muitos sem elevador, h\u00e1 um estilo de garagem coberta, individual, parecidas com as de casas, que estimulam at\u00e9 o menor dos empreendedores.\u00a0 Na pr\u00f3pria Sebasti\u00e3o Velho h\u00e1 o saboroso \u201cCantinho da L\u00fa\u201d e ainda o prestigiado sebo \u201cDesculpe a Poeira\u201d, do jornalista e palmeirense Ricardo Lombardi. A crise dos \u00faltimos anos levou muita gente para o empreendedorismo. Sem d\u00favida, a conjuntura econ\u00f4mica acelerou a moda dos neg\u00f3cios em garagens. Contudo, o Jarro \u00e9 mais fruto do acaso do que um reflexo direto desta tend\u00eancia.\u00a0 Apelidado de Jarro pelos amigos, J\u00falio Calil, o propriet\u00e1rio da casa, sempre sonhou em ter um bar, daqueles com mesa de sinuca e alvo de dardos na parede. S\u00f3 que seu boteco de espetinhos nasceu quase que sem querer. O publicit\u00e1rio morava em uma casa no Butant\u00e3, onde se reunia semanalmente com amigos em torno da churrasqueira. Ao se mudar para o apartamento da esposa Fl\u00e1via Toledo, em Pinheiros, J\u00falio ficou sem o cantinho para o churras. Foi ent\u00e3o que a Fl\u00e1via sugeriu fazer uma churrasqueira na garagem.\u00a0 A ideia do bar surgiu apenas durante a reforma da garagem. \u201cEnquanto estava reformando, muita gente parava e me perguntava: o que \u00e9 que vai abrir aqui?\u201d relata J\u00falio. Este foi o estalo para que o casal criasse o boteco de espetinhos. Ficou claro que a demanda reprimida por um churrasquinho n\u00e3o era s\u00f3 do J\u00falio. T\u00e3o logo abriu, o Jarro atraiu muitos vizinhos da \u00e1rea. \u201cA maioria de moradores daqui s\u00e3o de pr\u00e9dios antigos, que n\u00e3o t\u00eam churrasqueira, mas gostam de churrasco\u201d, conta J\u00falio.\u00a0 \u00c9 a vizinhan\u00e7a que d\u00e1 a t\u00f4nica do lugar. H\u00e1 uma atmosfera de camaradagem e empatia no ar. Clientes novos e antigos interagem, criam la\u00e7os e surgem algumas amizades. Uma cena que retrata bem este esp\u00edrito: toda a vez que algum morador do pr\u00e9dio precisa entrar ou sair com o carro da garagem comum do condom\u00ednio, os clientes do bar, que est\u00e3o na cal\u00e7ada, se levantam com suas mesas, cervejas e cadeiras para liberar a entrada do carro. N\u00e3o h\u00e1 reclama\u00e7\u00e3o. Muito pelo contr\u00e1rio, a movimenta\u00e7\u00e3o \u00e9 quase uma divers\u00e3o para os clientes. Uma figura catalisadora por tr\u00e1s desse cen\u00e1rio \u00e9 a Janaina Calil, irm\u00e3 de J\u00falio. Jana, como \u00e9 carinhosamente chamada pelos amigos, \u00e9 quem comanda o atendimento do Jarro. Jana\u00edna sabe receber pessoas, puxa conversa, faz conex\u00f5es entre os clientes. Certa noite, o banc\u00e1rio Andr\u00e9 Caetano foi visitar o filho numa rua da vizinhan\u00e7a. O novo local chamou sua aten\u00e7\u00e3o. Parou por l\u00e1. bateu um papo com Jana, criou-se uma amizade, o filho de Andr\u00e9 virou f\u00e3 dos espetinhos, e o banc\u00e1rio vai praticamente no Jarro todos os dias. Como o local \u00e9 muito pequeno, a opera\u00e7\u00e3o foi pensada para funcionar de maneira sustent\u00e1vel. S\u00f3 vendem cervejas tipo long neck. Assim evitam a log\u00edstica com copos e engradados de cerveja. Uma parceria foi firmada com a startup Green Mining, que recolhe e recicla as garrafas. Todas as embalagens para viagem s\u00e3o feitas de material biodegrad\u00e1vel. \u201cOs clientes tradicionais levam comida at\u00e9 mesmo em nossas vasilhas,\u00a0 no outro dia trazem de volta\u201d, diz J\u00falio. A casa fecha pontualmente \u00e0s 22 horas. Sinal de respeito aos vizinhos, que al\u00e9m dos espetos, s\u00e3o a alma do neg\u00f3cio nessa casa de churrasqueiro.\u00a0 Bom de Garfo Otavio Valle, 48, \u00e9 formado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) e p\u00f3s-graduado em fotografia pelo Senac, mas a vida de jornalista o fez especialista em “botecologia”, pela universidade “Bares da Vida”. <\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
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