Construído em 1880 pela família do coronel Antônio Joaquim de Carvalho, um dos barões do café da cidade, o local foi palco de muita violência contra os escravizados. Açoitamentos, punições e mortes marcaram um período do imóvel, que resiste ao tempo junto às memórias dos moradores. Inúmeras histórias e mistérios, entre elas a de um suposto tesouro escondido, atraem jornalistas, exploradores, caçadores de fantasmas e vândalos ao casarão, que está em ruínas e interditado. Na sexta-feira, 21 de junho, a superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) esteve no Assentamento para oficializar a cessão de uso do imóvel para a Prefeitura, que busca recursos para restauração (veja mais abaixo). Casarão do Assentamento Bela Vista/Araraquara (SP) — Foto: Amanda Rocha/g1 Barulhos do além A educadora infantil Elizângela Aparecida Pereira, de 42 anos, mora no Assentamento desde a infância e vivenciou situações “inexplicáveis”. “Quando me mudei para cá ainda não tinha energia elétrica, e uma coisa que sempre me assombrava era um barulho de carroça que tinha próximo ao córrego. Isso era uma coisa que eu ouvi mesmo. Os cachorros latiam, mas não tinha nada, ninguém. Eu dormia no quarto sozinha e morria de medo”, contou. Segundo a moradora, o som da carroça vinha acompanhado de barulhos de correntes e gritos de um homem. Elizângela Pereira e Adriana Barbado moram há 30 anos no Assentamento Bela Vista de Araraquara. O Casarão faz parte da memória e história rural da cidade. — Foto: Amanda Rocha/g1 Uma moradora, que preferiu não ser identificada, disse que fez o teste para ver se escutava algo e tudo se confirmou. Reza a lenda que à meia-noite as almas dos escravizados que conseguiram se libertar do coronel “caminham” pela vila rural no sentido a saída do assentamento. “Há alguns anos fui fazer o teste e meia-noite em ponto o barulho começou. Ouvi a charrete, as patas do cavalo e a corrente arrastando. Mas eu escutei um grito de felicidade, eu penso demais nos negros e como eles sofreram e o que passaram. Foi muito claro ouvir tudo aquilo, começou do nada e terminou do nada. É como se eles descessem a rua , e ouvia o grito deles, não era de agonia, era de libertação, como se estivessem fugindo daqui”, afirmou a moradora. História do Casarão do Assentamento Bela Vista é recheada de mitos e assombrações. — Foto: Amanda Rocha/g1 Segundo as moradoras, atualmente ninguém fala tanto sobre essas experiências. “Teve um período em que a gente escutava mais, hoje quase ninguém fala sobre isso. Pessoas sensitivas percebem a energia, é um lugar muito pesado. Dá um sentimento estranho, porque ao mesmo tempo é um lugar muito bonito”, disse Elizângela. Caça ao tesouro escondido e sangue Outro mito que ronda o lugar é sobre as moedas de ouro que teriam sido enterradas pelo coronel Antônio Joaquim de Carvalho em uma passagem secreta. Uma foto com um vulto em uma janela deu início a especulações e investigações. O fantasma do coronel ainda protegeria o tesouro. “Tudo surgiu por causa da foto porque apareceu um vulto na janela, mas não tinha ninguém aqui. A partir daí começou a investigação e foi atraindo gente, mídia, um apresentador de TV dormiu aqui. Muita gente tentou descobrir essa passagem secreta e onde estão enterradas as moedas, dizem que é o tesouro do coronel. Isso mexe muito com o imaginário das pessoas”, contou Elizângela. A trajetória de Carvalho está arraigada a histórias sangrentas de Araraquara. Antigo proprietário das terras do assentamento, a história e os moradores lembram que era um homem muito poderoso e perverso. Ele mantinha escravos na mansão mesmo após a Lei Áurea. Em 1887, o barão do café foi morto em briga com o jornalista Rozendo de Souza Brito, que acabou sendo linchado junto a seu tio Manuel de Souza Brito pelas ruas de Araraquara, no episódio que marcou a cidade como o “Linchamento dos Britos”. O jornalista e o coronel viviam em tensão política, de um lado o coronelismo e do outro um jovem jornalista que denunciava injustiças da cidade. Fachada do Casarão do Assentamento Bela Vista de Araraquara. Construção é de 1880 e resiste ao tempo. — Foto: Amanda Rocha/g1 Vandalismo e nostalgia Pichações, depredações e marcas de vandalismo tomam conta do casarão. Até pouco tempo, resquícios de grilhões e correntes eram encontrados nos muros da parte externa, mas muita gente levou como “lembrança” do que restou. Na parte térrea, ainda são vistas as últimas “argolas” nas paredes. Apesar das placas de “Entrada Proibida” e cercas para coibirem visitações devido a estrutura precária e perigosa, muitos se arriscam e ainda depredam o imóvel histórico. “Tinham correntes e argolas nas paredes, mas muitas pessoas que visitam foram deteriorando e tirando tudo daqui, até as grades. Essa coisa de cercar e a placa são para tentar preservar, porque as pessoas levam tudo embora”, contou a dona de casa Adriana Barbado, 51 anos. Adriana mora há mais de 30 anos no Assentamento e acompanhou a decadência do prédio. Teto desabando, paredes deterioradas e buracos no chão evidenciam o abandono do local. Mesmo assim, pessoas se arriscam e realizam sessões fotográficas no ambiente nostálgico. Assim como a educadora infantil Elizângela, ambas nutrem uma relação complexa com o espaço, uma mistura de orgulho e tristeza. “As crianças gostam muito daqui e a escola trabalha bastante essa temática da história local. Eu vinha brincar muito, é tão tradicional quanto a nossa festa junina . Embora tenha esse contexto triste, é um orgulho também porque ele ainda resiste e tem toda essa história da cidade”, comentou Elizângela. Dor e luta Uma espécie de piscina rasa resiste no espaço e, segundo os assentados, castigos cruéis eram aplicados contra os negros escravizados. Eles dizem que, após serem açoitados, os escravos eram obrigados a tomar banho com salmoura. Para a moradora Silvani Silva, o assentamento é fruto da resistência daqueles que foram historicamente excluídos. “Podemos compreender que a relação entre escravizados e assentados está nos termos de continuidade histórica de luta por direitos a terra, justiça social e superação das desigualdades estruturais. Devemos lembrar que na nossa região a luta pela terra foi feita por boias-frias em sua maioria homens e mulheres negros”, pontuou. “Piscina” de banho de salmoura ficava no fundo do Casarão e segundo moradoras era palco de castigos cruéis aos escravizados. — Foto: Amanda Rocha/g1 Embates e tombamento Um túnel fechado também intriga os curiosos de plantão. Há quem diga que ele servia de esconderijo aos escravizados no fim da abolição e que ligava a residência a uma tuia (local onde se armazenava os grãos de café), e que se encontra hoje totalmente em ruínas. “Como já havia acontecido a abolição, quando eram fiscalizados os coronéis escondiam os escravizados nesses túneis. Isso é uma das versões, pois alguns historiadores contestam. De fato, só confirmaremos quando houver as reformas ”, contou Silvani Silva, coordenadora de segurança alimentar de Araraquara. Há décadas, os moradores aguardam a reforma do casarão, que foi tombado por decreto municipal em 2018 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Arquitetônico, Paleontológico, Etnográfico, Arquivístico, Bibliográfico, Artístico, Paisagístico, Cultural e Ambiental do Município de Araraquara (Compphara). Porém, por pertencer Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no estado de São Paulo, o município não pôde investir no imóvel, que foi se deteriorando. Na última sexta-feira (21), a superintendência do Incra esteve no Assentamento para oficializar a cessão de uso do imóvel para a Prefeitura, que já havia sido decretada no Diário oficial de agosto de 2023. No mesmo ano, o projeto municipal “Requalificação e Conservação Integrada do Casarão (Sede) do Assentamento Bela Vista” foi estimado em R$ 5 milhões. De acordo com nota da Prefeitura, foram buscados recursos junto ao Comitê de Patrimônio Cultural e Economia da Cultura (CPCULT) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no modelo de transferências não reembolsáveis, cujos projetos na Região Sudeste podem ser apoiados em até 50% de seu valor total, não ultrapassando R$ 6 milhões. “Projetos estão sendo antecipados pelo Compphara e a sociedade civil do Assentamento e o município busca recursos para a reforma do patrimônio histórico”, contou Silvani. VÍDEOS DA EPTV: