Carlos Gomes nasceu em Campinas em 1836 e teve a carreira musical demarcada desde a infância com um pai e um irmão músicos. Ele ganhou reconhecimento internacional principalmente com Óperas como “O Guarani” e teve poucas composições apenas instrumentais. Por isso, a descoberta de “Eva”, composta em 1871, é uma algo bastante incomum na produção do maestro. 128 anos após a morte do maestro, em 5 de setembro de 2024, foi apresentada no I Festival Unicamp de Ópera pela Orquestra Sinfônica da Unicamp (OSU), no Teatro Municipal Castro Mendes, em Campinas (SP). Para entender como ocorreu a descoberta e os caminhos para que a música pôde mais uma vez encontrar uma orquestra, o g1 conversou com Lenita Mendes Nogueira, musicóloga que pesquisava no Museu Carlos Gomes no Centro de Ciências e Letras de Campinas (CCLA). A reportagem também visitou a Orquestra Sinfônica da Unicamp e conversou com a maestrina Cinthia Alireti e os músicos Cleiton e Fernando que contaram um pouco como foi a emoção em serem os primeiros a tocar a obra depois de mais de 100 anos esquecida. Valsa de Carlos Gomes com mais de 100 anos é descoberta em museu e tocada pela 1ª vez — Foto: Antonio Scarpinetti/Unicamp Descoberta de ‘Eva’ A pesquisadora conta que descobriu ‘Eva’ enquanto estava trabalhando em um acervo secundário, partituras de compositores europeus, no Museu Carlos Gomes, localizado no Centro de Ciências e Letras (CCLA), em Campinas (SP). Foi durante a organização que encontrou um conjunto de partituras cavadas que lhe chamou a atenção. Eram 20 caderninhos que correspondiam aos diferentes instrumentos da orquestra. 🎶 A partitura cavada é uma parte da partitura, ela mostra apenas um dos instrumentos que forma a música, e neste caso, estavam reunidos vinte instrumentos separados em caderninhos. Desta forma, antes de qualquer tentativa de recriar a música, se fazia necessário montar o quebra-cabeça de instrumentos. E como se a montagem já não fosse complexa por si só, cada caderninho não era um manuscrito original da mão do maestro, mas documentos copiados. “Dá muito mais trabalho para montar, porque na partitura está tudo visualmente claro, mas dá um trabalhão para montar, porque são instrumentos diferentes. E como eu falei, não é um manuscrito de Carlos Gomes, é uma peça dele, mas copiada por outras pessoas. São copistas diferentes”, disse. Processo de análise e reconstrução da música realizado pela professora Lenita Waldige Mendes Nogueira — Foto: Marcelo Gaudio/g1 Reconstrução de ‘Eva’ Para recriar a música, a professora explicou que cada manuscrito, originalmente feito à pena, foi transcrito para um software musical. Depois, foi necessário fazer o processo de montagem e edição, para criar a partitura com todos os instrumentos em uma página. Foram realizadas revisões e avaliações, para procurar algo errado ou faltando. A etapa seguinte teve participação da orquestra, uma primeira passagem onde são identificados erros de notas erradas, interação entre instrumentos, entre outros. “Tocar uma obra inédita é um trabalho de construção, não de reconstrução. Então a gente tem que buscar algumas fontes que a gente conhece, referências deste compositor para a gente conseguir fazer que a obra floresça. E tocar essa obra em particular, foi um pouco mais difícil, porque ela é uma valsa e a gente não nunca teve nenhuma referência de uma valsa na obra de Carlos Gomes”, explica a maestrina Cinthia Alireti. Nogueira conta que é esperado encontrar lacunas, e estas são resultado principalmente da forma como as partituras cavadas foram realizadas, a partir de diferentes pessoas que trabalharam na cópia dos originais. Nesse caso, é possível perceber a falta de alguma nota ou movimento em um dos cadernos que pode ser encontrado em outro instrumento completar. “Às vezes acontece, por exemplo, com o primeiro e o segundo violino que geralmente tocam mais ou menos parecidos no ritmo, de repente tem uma indicação do primeiro violino que não tá no segundo”, contou a pesquisadora. Folha de um dos instrumentos da valsa perdida de Carlos Gomes — Foto: Antonio Scarpinetti/Unicamp ‘Eva’ renascida O clarinetista Cleiton, contou que começou a tocar quando era criança, há 28 anos e desde 2014 está na Orquestra Sinfônica da Unicamp. Ele disse que a emoção em tocar uma música perdida pela primeira vez foi muito grande, mas ‘Eva’ teve algo a mais, pois ela dá destaque ao instrumento que toca. “Existe uma história que Carlos Gomes tinha um amigo que era clarinetista. Creio que talvez essa obra ele tenha pensado nesse amigo, porque tem muitos solos de clarinete, junto com orquestra, claro, mas o clarinete fica bem evidenciado nessa obra”, fala. Fernando Hehl, trompetista de vara na orquestra há 14 anos, ressalta a oportunidade de fazer parte da história da música clássica brasileira ao ser um dos primeiros músicos a tocar a valsa perdida do compositor campineiro. “Tocar Carlos Gomes, por si, só já é uma experiência fantástica. E quando a gente ainda tem a oportunidade de tocar uma peça inédita, recém-descoberta, é uma honra ainda maior, porque a gente tá escrevendo um pouquinho mais da história tão rica de Carlos Gomes”, conta. Valsa de Carlos Gomes com mais de 100 anos é descoberta em museu e tocada pela 1ª vez — Foto: Marcelo Gaudio/g1 ‘Eva’ de Carlos Gomes Datada de 1871, a professora imagina que tenha sido escrita em algum momento no fim do curso que o maestro realizou na Itália. E se destaca por ser uma peça apenas instrumental e aparentemente não faz parte de algo maior, característica que destoa da produção mais tradicional do músico. “Aparentemente é uma obra solta. Pode ser que ele tenha escrito para uma ópera que ele não continuou, porque ele teve várias obras que começou, mas não terminou. Mas em princípio é uma peça isolada”, explicou a professora. O Guarani, a obra mais conhecida do maestro, é de 1870, mas a professora conta que outras composições já tinham sido realizadas, como duas operetas publicadas em revistas que juntavam texto e música. Mas a relação com outra música, seja como inspiração ou outra perdida, a princípio não existe, ainda que aponte a necessidade de mais pesquisa. Alireti contou que não saber o contexto para o qual a obra foi escrita dificulta ainda mais para preencher as lacunas, mas pensa que deve ter sido feita para bailes da época da juventude do maestro e apesar da leveza, identifica alguns pontos dramáticos que são representativos de Carlos Gomes. “Tem uma melodia ou outra que tem um drama um pouco maior que é mais é pertencente ao universo do Carlos Gomes e que são as referências que a gente tentou usar para construir a obra. Inclusive sentimentos, os direcionamentos que surgem como em uma narrativa”, diz a maestrina. O Museu Carlos Gomes no CCLA continua sendo organizado, então a professora acredita que ainda há possibilidade de encontrar algo similar, de copistas, mas dificilmente de obras escritas pelo próprio maestro, pois estas já estão todas catalogadas. Valsa de Carlos Gomes com mais de 100 anos é descoberta em museu e tocada pela 1ª vez — Foto: Lenita Waldige Mendes Nogueira/Arquivo pessoal O Museu Carlos Gomes A valsa foi encontrada no Museu Carlos Gomes, que fica no Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), uma instituição cultural criada em 1901 que guarda um importante acervo da história de Campinas composto principalmente por atividades artísticas e científicas. Além do museu voltado para o maestro, também abriga o museu de Campos Sales, uma biblioteca com 150 mil volumes, uma pinacoteca, galeria de arte e promove eventos culturais. A professora conta que todo o trabalho acadêmico de pesquisa sobre o compositor são no museu Carlos Gomes, então é um arquivo está sempre sendo revisitado. “Ali no Carlos Gomes tem muita música, estimo que cerca de mil manuscritos”, concluí Nogueira. VÍDEOS: saiba tudo sobre Campinas e Região