Em junho deste ano, o lançamento do longa-metragem “Sob as águas do Sena” levanta questões sobre a distância entre ficção e realidade quando o assunto é tubarão. Quando um campeonato mundial de triatlo está prestes a acontecer em Paris pela primeira vez, um grande problema surge a partir de uma descoberta da ativista ambiental Mika (Léa Léviant): o escape de um tubarão para o Rio Sena, que poderia atacar todos os competidores. Na trama, a poluição do mar e as mudanças climáticas estariam por trás desse escape. Segundo a doutora em Oceanografia e bióloga Amanda Alves Gomes, um tubarão-branco nunca poderia entrar em um ambiente de água doce por não conseguir sobreviver em ambientes de baixa salinidade. “Os tubarões são essencialmente marinhos. Raras espécies toleram água salobra, de estuário, que é aquela região que o rio se encontra com o mar. Um delas é o tubarão-cabeça-chata, que já foi avistado no Rio Amazonas e possui adaptações para viver em locais com baixa salinidade. Esse não é o caso do tubarão-branco, que á espécie do filme”, explica. Cena do filme ‘Sob as águas do Sena’ — Foto: Reprodução Netflix De acordo com a especialista, se um tubarão-branco conseguisse entrar no Rio Sena ele morreria em pouco tempo, pois não conseguiria regular o balanço de sais de seu corpo. “Animais marinhos tem aproximadamente a mesma proporção de sais que água do mar ao seu redor, mas se entram em água doce, a concentração de sais será mais alta em seu corpo do que no ambiente. Eles então absorveriam mais água, mas não conseguiriam eliminá-la e inchariam até a morte”, afirma Amanda. Mudanças climáticas Para Fábio Di Dario, zoólogo e pesquisador do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUPEM/UFRJ), o impacto das mudanças climáticas aos animais marinhos está essencialmente ligado à perda de habitats dessas espécies. Muitos organismos possuem uma forte correlação com os ambientes onde vivem e, embora possamos imaginar que o mar é um ambiente sem fronteiras, na verdade ele possui diversas características físicas e químicas que limitam a distribuição de espécies a áreas específicas. Dessa forma, o especialista destaca que as mudanças climáticas aceleradas vistas nas últimas décadas resultam na alteração dos habitats naturais, levando à redução e, em alguns casos, à extinção de populações. “Apesar disso, existem outras espécies que por características biológicas e adaptativas, conseguem se deslocar com pouco mais de facilidade, ou seja, embora elas também sejam muito associadas a determinados tipos de ambientes, elas conseguem se deslocar”. Fábio comenta que já existem estudos, principalmente no Hemisfério Norte, onde essas pesquisas são feitas com mais profundidade. “Entende-se que algumas espécies estão mudando o padrão de distribuição, então, por exemplo, animais que são tipicamente de águas mais quentes, com o aquecimento global e a mudança da temperatura das massas de água, passaram a ser encontrados em latitudes mais altas, mais próximas aos polos”, explica. Trecho do filme ‘Sob as águas do Sena’. — Foto: Divulgação Netflix No entanto, esse cenário ainda é considerado “uma mudança em pequena escala”. Segundo Hugo Gallo Neto, oceanógrafo e diretor do Aquário de Ubatuba (SP), algumas espécies de tubarão possuem a capacidade de viver em água doce, sendo elas: Tubarão-cabeça-chata (Carcharhinus leucas): é uma das poucas espécies que pode tolerar e até mesmo prosperar em água doce. São conhecidos por viajar para rios e lagos e podem ser encontrados em sistemas fluviais de vários continentes, incluindo o Rio Mississippi (EUA) e o Rio Amazonas;Tubarão do Ganges (Glyphis gangeticus): nativo dos rios da Índia e Bangladesh, como o rio Ganges. Embora seja raro, ele é um verdadeiro tubarão de água doce;Tubarão de Borneo (Glyphis fowlerae): encontrado em rios e estuários na região da Ilha de Bornéu, no Sudeste Asiático. De acordo com o especialista, tubarões de água doce têm a capacidade de osmorregular, ou seja, ajustar a concentração de sal dentro de seus corpos para se adaptar à água doce. Ao contrário dos tubarões marinhos, que precisam reter sal em seus corpos, os tubarões de água doce devem excretar o excesso de água para evitar a diluição dos sais corporais. Além disso, essas espécies têm rins e glândulas especiais que ajudam a manter o equilíbrio de sal e água em seus corpos, permitindo-lhes sobreviver em água doce. No entanto, mesmo as espécies de tubarões que podem viver em água doce tendem a preferir habitats estuarinos ou mistos, onde a salinidade varia. “Eles raramente permanecem em ambientes de água doce por longos períodos”, comenta Hugo. Os biólogos ressaltam que é importante não estigmatizar os tubarões a partir de representações de filmes de ficção, como “Sob as águas do Sena”. Animais marinhos no Rio Sena Orca no rio Sena, em Paris — Foto: Redes sociais / Reprodução Em maio de 2022, uma orca foi encontrada morta entre Le Havre e Rouen, na região noroeste da França. O animal teria estava desorientado e entrou acidentalmente no Sena, pelo Canal da Mancha, onde o rio deságua. Baleia beluga no rio Sena, em Paris — Foto: Sea Shepherd France Ainda em 2022, em agosto, uma beluga foi encontrada no Sena, perto de uma eclusa em Vernon. Segundo os jornais da época, o animal passou mais de uma semana perdido no rio e precisou ser sacrificado por veterinários após o resgate. O Rio Sena tem porte relativamente grande e se abre para uma grande área marinha, onde uma numerosa população de animais vive. “Não há explicação pontual para isso. São vários fatores inter-relacionados, mas em essência baleias e golfinhos são animais que respiram ar, então aspectos fisiológicos desses indivíduos dá uma certa tolerância a ambientes de água doce”, finaliza Fábio. VÍDEOS: Destaques Terra da Gente