Há 700 anos, os mapas não tinham apenas a função de representar locais com precisão. Mais do que isso, eles também mostravam visões de um mundo onde criaturas fantásticas, como monstros e sereias, indicavam o fim do território conhecido. O estudo desses documentos foi tema de uma tese de doutorado que ganhou o prêmio destaque de 2023 e 2024 da Unicamp. Para saber mais sobre esses mapas, o g1 conversou com a autora da tese, a geógrafa Deyse Cristina Brito Fabrício. Durante o doutorado, ela estudou as diferentes representações do mundo feitas entre os séculos XIII e XVI. “A concepção de que depois do fim do mundo teria o abismo e mais nada não existia na Idade Média. [Os mapas mostram] o fim do mundo que os europeus conheciam. Esse fim do mundo se alargava e os monstros eram sempre relegados para as bordas”, conta. Atlas Catalão – Abraham Cresques (1375) — Foto: Coleção: Bibliothèque nationale de France 🌎 Representando mundos Deyse explica que entre os séculos XIII e XVI os mapas se apresentavam em três formatos principais, todos com ícones que ela afirma serem reflexos de crenças e medos reais que as pessoas compartilhavam à época: T-O, que eram os mais comuns e colocavam Jerusalém como centro do mundo; Cartas Portulanas, mais parecidas com os mapas atuais, e que tinham como objetivo ajudar na localização geográfica; Transição, nomeados assim pela pesquisadora, misturam elementos dos anteriores e recuperam os conceitos de latitudes e longitudes de Ptolomeu. “A métrica da escala não era uma preocupação naquela época. Tinham mais coisas importantes para representar. Não era o objetivo do mapa representar o espaço ou saber qual era a distância exata para Jerusalém. O importante é saber que Jerusalém ficava no centro do mundo no mundo conhecido”, explica sobre os mapas T-O. Assim, os mapas contavam com elementos de significado simbólico que ajudava na compreensão histórica e filosófica. Um exemplo disso é que, entre os itens usados, estão: A Torre de BabelAlexandre, o GrandeCriaturas místicas, como sereias e dragõesLugares imaginários, como o Paraíso e o Inferno Mapa de Ebstorf (c.1240). Mapa-múndi estilo T-O, feito em pele de cabra e mede 3,6 x 3,6m — Foto: Reprodução 🧭🏝️ Ilhas lendárias e monstros marítimos A geógrafa explica que sempre que novas terras eram descobertas, o mundo dos europeus aumentava e as criaturas e locais míticos eram movidos no mapa. Com a exploração do Oceano Atlântico, a partir do século XV, alguns territórios mitológicos, como as Ilhas Brasil e de São Brandão, começaram a aparecer nos documentos, mas cada vez em um lugar diferente. “Eu parto do princípio tanto do Paraíso, quanto do Preste João e das criaturas, que elas eram uma realidade geográfica, porque elas eram descritas. Isidoro de Sevilha descreveu, Santo Agostinho descreveu e mostram como se fossem realidade na época”, diz. Detalhe do mapa Typus Orbis Terrarum (1570). Ilhas São brandão e Brazil — Foto: Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos Algo semelhante acontecia com as criaturas marítimas, sempre inseridas em locais distantes ou pouco conhecidos, eram uma forma de interpretar a realidade, como a descrição de Cristóvão Colombo de um peixe-boi, animal desconhecido dos europeus até o século XVI e que o navegador chamou de sereias. “Elas só não são tão bonitas, quanto os antigos relataram”, brinca com a ideia. Acima.Cortejo de Poseidon. Carlos V na carruagem. Abaixo. Criaturas marinhas e o brasão de Portugal no Oceano Austral. Mapa de Diego Gutiérrez — Foto: Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos 🗺️ Diferentes públicos Deyse destaca que os mapas eram produzidos também pensando em diferentes públicos e suportes, dos pergaminhos em pele de carneiro, no papel como ilustração em livros e, até mesmo, em murais de igrejas, cada um com funções diferentes. Dentre eles, um dos maiores mapas-múndi murais que resistiu ao tempo foi construído no século XIII e está na Catedral de Hereford, no Reino Unido. Ele tinha fins didáticos e reunia informações de história, religiosa ou não, assim como zoologia, botânica e outros conceitos para ensinar os fiéis. “Esses mapas são como enciclopédias ilustradas […] e representar o mundo também tinha muito significado pelo mundo ser uma criação de Deus”, fala. A pesquisadora complementa que o estudo de um mapa era a oportunidade de “decifrar o livro de Deus, pois a natureza era um livro de Deus também”. Assim, os mapas não restringiam o mundo, mas registravam o conhecimento que sempre poderia ser expandido. “Sempre se soube que tinha outras terras, terras que os europeus desconheciam, e acreditavam que o mundo conhecido deles era pequeno em relação ao globo terrestre”, finaliza. Typus Orbis Terrarum, Abraão Ortelius, do atlas Theatrum Orbus Terrarum — Foto: Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos