Um dos representantes do movimento judaico liberal na França e autor de numerosas obras, o rabino franco-israelense faz o balanço de um ano de caos após os ataques de Hamas no sul de Israel: “Para além das diferenças e da multiplicidade das correntes judaicas, estes atentados têm uma dimensão existencial para o povo judeu.” Olivier Bonnel – Vatican News Uma das últimas vezes que o rabino David Meyer esteve em Roma foi na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde ensina história do pensamento judaico contemporâneo. Um encontro que teve lugar alguns dias depois dos atentados de Hamas no sul de Israel, que puseram todo um país em pânico. Um ano depois, no dia em que Israel recorda as suas vítimas e a guerra continua se alastrando na região, o rabino, um dos representantes do movimento judaico liberal na França e autor de numerosas obras, volta ao que mudou desde 7 de outubro de 2023, ao aumento do antissemitismo em muitos países ocidentais, mas também à “solidão” dos judeus perante um oceano de violência e as tentativas de encontrar formas de olhar para o futuro com esperança. O que é que o 7 de outubro representou para os judeus? Para a grande maioria dos judeus, sejam eles israelenses ou não, penso que existe um sentimento de que, após o 7 de outubro, o mundo mudou. Penso que o que mudou foi, em primeiro lugar, a percepção de que a segurança que pensávamos que o Estado de Israel oferecia a si e ao judaísmo, bem, essa segurança, foi destruída. Foi por isso que falamos dos pogroms, porque remeteram os judeus para uma realidade do passado que pensávamos ter sido abolida em alguns lugares pela História e pela criação do Estado de Israel. Deste ponto de vista, os acontecimentos de 7 de outubro e, evidentemente, o que se passou depois, provocaram um trauma muito profundo. O que aconteceu também, talvez de forma mais geral para o povo judeu, foi o sentimento de um despertar de um antissemitismo assustador em todos os países em que nos encontramos. É, de fato, extremamente difícil de compreender, embora, talvez, o antissemitismo não tenha de ser compreendido. Faz parte daquilo que as sociedades humanas viveram há tanto tempo e pagamos o preço durante séculos. De alguma forma, pensamos que, no fim das contas, nada mudou. Mesmo que sejamos supostamente “aceitos” nos países onde nos encontramos. A realidade é que nos sentimos extremamente sós e extremamente odiados. Sentimos em relação a nós um ódio que desafia toda racionalidade, absolutamente incompreensível e surpreendente. Acredito que, nessa perspectiva, há também uma mudança profunda que ocorreu para muitos judeus no mundo. Muitos judeus dizem que durante um ano foram solicitados a prestar contas pelas políticas seguidas por Israel e pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Um fenômeno que não é novo, mas que se fortaleceu, como combatê-lo? O problema é que, na verdade, o Judaísmo está sendo chamado a prestar contas pelas políticas do Estado de Israel. O que precisamos entender – e é muito difícil de explicar – é a natureza deste vínculo entre o Judaísmo e o Estado de Israel. Porque isto não significa que todos os judeus apoiem sempre todas as políticas de Israel, nunca foi assim e não pode ser assim. Ao mesmo tempo, também não pode haver uma desconexão entre o Judaísmo e o Estado de Israel. O povo judeu não é apenas uma religião, não é apenas o judaísmo, é também uma nação, uma etnia, uma história. De alguma forma, não podemos separar os dois. A dificuldade que temos é traduzir de alguma forma este sentimento e tentar fazê-lo entender a um público que não tem nenhuma razão particular para conhecer este tema, mas que deveria compreender que quando Israel é atacado, é o Judaísmo que é atacado. Quando os judeus são atacados, Israel também é atacado. Isto não significa que um seja a igualdade absoluta e total do outro, mas simplesmente que o vínculo entre os dois é indissolúvel, existencial. É por isso que o povo judeu sente tão profundamente a crise que nos afeta hoje. Compreender melhor esta realidade, este vínculo inabalável de que fala, é a chave antes de tudo para lutar contra a ignorância? Lutar contra a ignorância é sempre bom. Qualquer solução para qualquer conflito implica necessariamente uma redução da ignorância e um aumento da compreensão, da sofisticação, da capacidade de pensar. Mas há uma enorme consternação na comunidade judaica ao ver que somos uma minoria. Temos visto hordas de manifestações nos países ocidentais, na Inglaterra, nas universidades, nos Estados Unidos, na França, em quase todo o lado. De alguma forma, não temos nos instrumentos para nos defender. A única coisa que podemos fazer é dizer: continuamos existindo, continuamos existindo apesar de tudo. Não sei como vamos fazer para acabar com o antissemitismo, que em algum lugar, ao longo dos séculos, sempre encontrou uma nova maneira de renascer e encontrar uma nova face. Não tenho mais esperança de que possamos derrotar o antissemitismo de uma forma ou de outra. A única coisa que tentamos fazer é continuar sobrevivendo. E isso já é difícil. Além disso, é claro, prosseguir no ensinamento continua sendo uma coisa importante, de fato necessária. Se há uma luz de esperança em algum lugar, ela vem por meio de uma refinição do pensamento, por meio da criação de um pensamento mais crítico, para que as pessoas pensem por si mesmas e não se deixem guiar por slogans simplificadores. Acho que uma das coisas que mais nos incomodam é o fato de não pedirmos às pessoas que nos apoiem. Mas o que esperávamos é que nas sociedades ocidentais, que deveriam ser sociedades onde o pensamento crítico se desenvolveu, pudéssemos encontrar uma maneira de não resumir e simplificar o problema do Estado de Israel, colocando os bons de um lado e os ruins do outro. Nem mesmo isso podemos ver. Como os textos judaicos o ajudam nesses tempos sombrios? Admito que, a nível muito pessoal, o refúgio que encontro no estudo é uma verdadeira tábua de salvação, nesses dias de comemoração em que nem me atrevo mais a ver o noticiário. Diante da tentação do cansaço e do abandono, há sempre a possibilidade de estudar e voltar aos livros. Em termos mais universais, para ir além da minha experiência pessoal, o que sempre me impressiona nos textos da tradição rabínica é que eles sempre foram centrados na vida real. Eles não são textos dogmáticos que vivem em um sonho, nem são textos que vivem numa ideologia que eles mesmos teriam formado. Pelo contrário, são textos que se envolvem numa espécie de confronto com a realidade da experiência do povo judeu em vários momentos de sua história. Acho que também pode haver uma mensagem para outras tradições religiosas que podem ter uma certa tendência a espiritualizar a história. Qual é, na sua opinião, a chave hoje para que a paz retorne e seja construída especialmente no Oriente Médio? Encontrar a paz, isto é, encontrar uma solução inteligente que responda ao que as pessoas racionais poderiam pensar sobre o bem-estar de ambos os povos, é uma solução extremamente simples. Muitas pessoas encontraram estas soluções, ideias que proliferaram nos últimos 30 anos. O que é complicado, e aqui está a chave do problema da paz, é como convencer as populações que já não querem ser convencidas ou que nunca quiseram ser convencidas. Como podemos convencer as populações que, ao longo das décadas, se radicalizaram e perderam o sentido da sua própria educação e pensamento crítico? Acredito que precisamos ir além do quadro em que sempre pensamos em imaginar a paz, precisamos de um pensamento muito mais original e ousado para tentar resolver esta equação. No último ano houve sinais de afeto de outras religiões para com os judeus. Qual é a natureza destas relações, um ano depois dos massacres de 7 de outubro? O diálogo inter-religioso mudou? Felizmente o diálogo permanece, mas não com todos. Ao longo deste ano, a comunidade judaica ficou muito decepcionada com algumas posições assumidas por diferentes religiões e, ao mesmo tempo, ficou muito surpresa com outros tipos de posições. Por exemplo, a declaração dos bispos da França de poucos dias atrás, para as comemorações do 7 de outubro, tocou profundamente o coração dos judeus. Há diálogos que permanecem. O diálogo e em particular o diálogo judaico-cristão mostraram que em 60 anos as coisas, mesmo as mais enraizadas na percepção humana, poderão mudar depois de quase 2.000 anos de história feroz. Penso que a realidade daquilo que foi alcançado entre o mundo católico e o povo judeu é um indicador da capacidade de superar o que parecia impossível. Isso requer coragem e pessoas visionárias. Precisamos simplesmente ouvir uns aos outros. Se este diálogo faz emergir pessoas audazes e com visão de futuro, acho que em algum lugar há uma mensagem de esperança que é como uma pequena luz na noite. E nestes tempos sombrios, um pouco de luz já é muito. Obrigado por ter lido este artigo. Se quiser se manter atualizado, assine a nossa newsletter clicando aqui e se inscreva no nosso canal do WhatsApp acessando aqui