The New York Times Gilbert Power, um veterano do rádio público e apresentador do podcast On Record, foi a uma pequena cidade na Irlanda para fazer um programa sobre um caso de desaparecimento de 20 anos. O podcast, ele explicou, era para ser “um pouco de diversão, algo para ouvir a caminho de casa”. “Eu não entendia na época o quanto uma história realmente tem de poder. Mas as histórias podem nos mudar.” Gilbert, interpretado por um sorridente Will Forte, é o herói levemente inane de “Bodkin”, uma série de sete episódios que estreou na semana passada na Netflix. E, como o apresentador fictício de um podcast fictício, ele tem muita concorrência na tela. Nos últimos cinco anos, podcasters surgiram como os protagonistas desalinhados de inúmeros programas de televisão (“Baseado em uma História Real”, “Truth Be Told”, “Only Murders in the Building”, “Alex Inc.”) e filmes (“Sempre em Frente”, “Vingança”, “Monolith”, “Mais que Amigos”). Até a pioneira Carrie Bradshaw estava a bordo; em “And Just Like That…”, ela passou do jornalismo impresso para o podcast de conselhos “X, Y and Me”, antes de seguir solo. Algumas dessas obras são comédias, outras dramas. Muitas delas envolvem um ou mais mistérios em homenagem ou paródia aos podcasts de crimes reais. Nesses programas e filmes, os podcasters preenchem os papéis antes ocupados por jornalistas ou detetives amadores, como novatos desesperados por respostas. Esses protagonistas muitas vezes são atrapalhados, e sua relação com a ética é distintamente intermitente. Mas personagens como esses ajudam a realizar uma fantasia muito particular: a de que podemos dizer a verdade enquanto contamos uma boa, possivelmente até poderosa, história. E talvez conseguir um patrocínio de colchão enquanto estamos fazendo isso. Jez Scharf, o criador de “Bodkin”, sonhou com o programa após várias viagens de trabalho à Irlanda (ele e Alex Metcalf são os showrunners). Scharf, que foi criado na Inglaterra, se sentiu deslocado na Irlanda, um estrangeiro. Ele estava ouvindo muitos podcasts na época, especialmente de crimes reais —S Town, Serial, West Cork. A democratização da internet significava que qualquer pessoa com acesso a um telefone poderia fazer um podcast. Como seria, ele se perguntou, para um estrangeiro aparecer em um lugar estranho e questionar as pessoas sobre suas experiências mais traumáticas? “Eu achei essa ideia amplamente absurda e um meio interessante de fazer um programa de detetive um pouco diferente”, ele disse durante uma recente chamada de vídeo. Os podcasters, é claro, não são as únicas pessoas com tendência a chegar e fazer perguntas difíceis. Jornalistas também fazem isso; “Bodkin” sobrecarrega Gilbert com um deles, Dove, uma repórter do Guardian interpretada por Siobhan Cullen. Mas nem todos os podcasters são jornalistas, e nem todos os podcasters se sentem obrigados a seguir a ética jornalística. Metcalf disse: “Estávamos realmente conscientes da relação entre o que o jornalismo deveria ser —atrás da verdade, ‘apenas os fatos, senhora’— e esse mundo emergente do protojornalismo, feito por qualquer pessoa que tenha um microfone.” Até jornalistas reais podem achar fazer podcasts libertador. Rebecca Jarvis, correspondente da ABC News e apresentadora dos podcasts No Limits With Rebecca Jarvis e The Dropout, disse que, enquanto o jornalismo tradicional tem tradições e regras, o podcast oferece novas liberdades. “Pode parecer um pouco mais como o Velho Oeste”, ela disse em uma entrevista. Essas liberdades podem ser abusadas, no entanto, o que abre possibilidades de narrativas matadoras. Pessoas inteligentes fazendo escolhas corretas tornam a televisão entediante. E o fato de que qualquer pessoa com uma conexão com a internet pode criar seu próprio feed oferece uma emoção vicária (Você é intrometido e tem um smartphone? Você também pode ser um detetive e um apresentador de programa!), enquanto gera tensão dramática a partir de pessoas comuns se metendo em encrencas. Por exemplo, os protagonistas amorais da série “Baseado em uma História Real” (no Brasil disponível pelo Globoplay), uma sátira ocasionalmente sórdida da obsessão americana por crimes reais. Ela se baseia em uma escolha objetivamente terrível feita por um casal entediado: quando um professor de tênis (Chris Messina) e sua esposa corretora de imóveis (Kaley Cuoco) descobrem que seu encanador é um serial killer, em vez de chamar a polícia, eles decidem gravar um podcast com ele, lucrando com a criminalidade mesmo enquanto ele continua matando. Annie Weisman, a showrunner da 2ª temporada, disse que colocar podcasters no centro do show permitiu liberdades na narrativa. “Histórias sobre jornalismo responsável e ético não são tão divertidas porque a realidade é um processo muito metódico, tedioso, chato e longo quando é feito de forma correta e bem feita”, ela disse. “Precisamos disso para a democracia, e é muito importante. Mas quando estamos brincando neste mundo mais pulp de crimes reais, estamos nos desvinculando dessas restrições.” Alguns acham que tal desvinculação desvaloriza a reputação dos investigadores de fatos. Joe Saltzman, professor da Escola Annenberg de Comunicação e Jornalismo da USC, que estuda a representação de jornalistas na cultura popular, não faz distinção entre podcasters e repórteres de transmissão e impressos. Ele acredita que eles são representados de maneiras semelhantes, muitas vezes negativas. “As pessoas adoram fofocas e notícias, mas odeiam as pessoas que lhes trazem essas informações”, disse ele. “E quanto mais veem o processo envolvido, mais as odeiam.” Saltzman argumenta que quando se trata de TV e cinema, jornalistas em geral —repórteres, podcasters, blogueiros, vloggers— geralmente serão perdoados por suas falhas éticas, desde que estejam atuando no interesse público. Mas, às vezes, como em “Bodkin”, “Baseado em uma História Real” e “Only Murders in the Building”, esses interesses são mais privados. “Quando usam o precioso recurso dos meios de comunicação para seu próprio ganho pessoal, então há uma imagem realmente negativa dos jornalistas”, disse ele. Em um momento em que o negócio de notícias está em crise, jornalistas em muitos lugares estão sob ameaça, e as “notícias falsas” se tornaram frequentes, assistir podcasters fazendo más escolhas, em vez de repórteres profissionais fazendo isso, parece menos desagradável, pelo menos. Mostrar podcasters como tolos, gananciosos ou corruptos não convida a tantas consequências reputacionais. Às vezes, até é divertido. John Hoffman, que criou “Only Murders in the Building” com Steve Martin, queria adicionar um elemento de podcast em parte para criar um cenário para Martin e seu co-astro Martin Short atuarem. O formato de podcast de crime verdadeiro permite a Charles (Martin) e Oliver (Short), juntamente com Selena Gomez na pele de Mabel, cometerem erros éticos e investigativos, ao mesmo tempo que permitem muita comédia baseada em personagens. O show, uma aclamada série do Hulu (no Brasil a série está disponível no Star+), também conseguiu um pouco de comentário sobre a natureza abutre do gênero de crime verdadeiro quando fez da assassina da 2ª temporada uma produtora de podcast (uma vantagem adicional: deu à sua colega, interpretada por Tina Fey, muito material). “Os podcasters estão procurando contar a história, mas também estão trazendo o pessoal”, disse Hoffman. “Estou realmente interessado na humanidade de todos os envolvidos em torno de um incidente ou tragédia.” Jarvis, a jornalista podcaster, é fã de “Only Murders in the Building”. Ela gosta de como o show satiriza clichês de podcast, ao mesmo tempo que retrata a emoção de fazer um podcast. “Eles capturam a empolgação de um pequeno grupo de pessoas que estão se esforçando e trabalhando muito para contar uma história”, disse ela. Essa empolgação vem mais facilmente, acrescentou ela, porque “Only Murders” não precisa mostrar o trabalho que jornalistas reais e muitos podcasters reais fariam —a pesquisa, a verificação de fatos. E, nesse quesito, está tudo bem para Jarvis. “Eu só aproveito como entretenimento”, disse ela sobre o show. “Se fosse destinado a ser uma representação de como fazemos o trabalho que fazemos, não seria preciso.”