Este ano, o que preocupa pesquisadores do Projeto Charão é o impacto das enchentes que atingiram quase 95% dos municípios do estado, comprometendo áreas importantes para a reprodução do psitacídeo, como as cidades de Caxias do Sul (RS) e Santa Maria (RS). Das 497 cidades do estado, somente 26 não foram afetadas pela chuva. As enchentes que aconteceram entre o final de abril e início de maio foram consideradas parte da maior catástrofe climática da história do estado. De acordo com a bióloga e coordenadora do Projeto Charão, Nêmora Prestes, essas inundações devem repercutir já no próximo ciclo reprodutivo do papagaio-charão. Papagaio-charão ocorre somente em dois estado do Brasil: Rio Grande do Sul e Santa Catarina — Foto: Raphael Kurz “Os papagaios usam cavidades das árvores, por isso sempre falamos que árvores velhas ou mortas não perdem suas funções para a fauna silvestre. Precisamos acompanhar o comportamento dos indivíduos, mas possivelmente eles devem avaliar se vale a pena reproduzir neste ano. Nós estamos muito apreensivos”, relata a professora. Segundo ela, já houve casos em que a produção do pinhão foi baixa e casais de charão colocaram menos ovos como estratégia de sobrevivência. “Isso nunca havia acontecido e não sabemos ainda se eles voltarão para áreas afetadas ou poderão, pela sua plasticidade, ocupar áreas de outras populações da espécie. Plasticidade é a capacidade que a fauna silvestre pode apresentar respondendo a estímulos ambientais que não são favoráveis a eles, havendo uma certa ‘adaptação’ a novos locais”, completa. Considerado o menor entre as espécies de papagaios do Brasil, o papagaio-charão ocorre no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e é o único papagaio migratório do país. Apesar do tamanho pequeno, a espécie surpreende pela capacidade de voar grandes distâncias para se alimentar de pinhões. O papagaio-charão se reproduz em uma ampla região do Rio Grande do Sul e quando o outono vai se aproximando, os bandos se deslocam para o sudeste de Santa Catarina em busca das florestas com araucárias, onde tem boa oferta de sementes do pinheiro-brasileiro (Araucaria angustifolia) — Nêmora Prestes, bióloga e coordenadora do Projeto Charão. O papagaio-charão é uma espécie monogâmica, formando casais para toda a vida — Foto: Raphael Kurz Outra espécie estudada pelo Projeto Charão é o papagaio-de-peito-roxo (Amazona vinacea), ameaçado de extinção devido à caça para contrabando e a destruição de seu habitat. “Esta espécie apresenta distribuição no Sudeste e Sul, com alguns poucos registros na Bahia. Em Minas Gerais, estão usando palmeiras para reproduzir, mas não em suas cavidades e sim nos galhos. Ou seja, a espécie que necessitava de cavidades para a reprodução está utilizando outro lugar para se reproduzir, que não apresenta ocos”, pontua. Comportamento migratório e reprodução De acordo com a pesquisadora, o papagaio-charão tem um comportamento bastante peculiar. Eles reúnem todos os indivíduos de uma população e se deslocam para locais que são bons sítios de forrageamento (alimentação). “Consequentemente, no final da safra do pinhão, eles retornam para locais que utilizam para reprodução. São grupos grandes, nós já registramos esse comportamento migratório de mais ou menos 120 indivíduos juntos. Já vi coisas lindas nessa vida, mas a reunião dos papagaios acho que é a mais linda que vi em toda a minha vida”, lembra Nêmora. Quando a safra de pinhão começa a declinar, os bandos começam a retornar para o Rio Grande do Sul para começar um novo ciclo reprodutivo — Foto: Gabriel Freitas O papagaio-charão é uma espécie monogâmica, formando casais para toda a vida. “Eles só se separam se um deles morrer. Na literatura temos registros de casais de psitacídeos que ficaram juntos por 70 anos”. O macho e a fêmea ficam pareados ainda no primeiro ano de vida, mas começam a reproduzir a partir de seu terceiro ano. Eles investigam as cavidades na florestas a partir de julho ou agorsto e a fêmea inicia a postura em setembro, colocando de 3 a 4 ovos. “O processo de incubação dos ovos dura em torno de 26 dias. Quando eclodem, os filhotes são totalmente dependentes dos pais, logo, o cuidado é biparental (feito pelo macho e pela fêmea). Eles levam de 53 a 57 dias para saírem do ninho, porque ficam muito vulneráveis à predação natural e pelo homem”, explica Nêmora. Segundo a pesquisadora, a fêmea só retorna com o macho para este dormitório quando os filhotes tiverem de uma a duas semanas. Os filhotes recrutam a população por volta de 13 dias a partir da saída de seu ninho. Papagaio-charão é o único papagaio migratório do Brasil — Foto: Raphael Kurz “Em poucos dias, este filhote já participa desta grande migração para Santa Catarina em busca de alimento. Tem algumas populações mais ao sul do RS que voam mais de 400 km para chegar em Urupema (SC). Claro que não fazem isso num único voo. Eles costumam reunir toda a população em Muitos Capões (RS). Este comportamento é registrado na ida da migração e também em seu retorno”. Desmatamento das matas de araucárias A pesquisa pontua que, até a década de 80, a espécie conseguia ter oferta de pinhão dentro do estado do Rio Grande do Sul, como é o caso dos municípios de Muitos Capões e Esmeralda (RS). A floresta de araucária é um das vegetações que compõe a Mata Atlântica — Foto: Luciano Lima “Nós gaúchos exploramos muito a araucária em décadas passadas, então nossos ambientes ficaram empobrecidos. A cidade em que resido, por exemplo, que é Carazinho, havia mais de 60 serralherias e todas elas exploraram muito a madeira da araucária, que pode levar de 20 a 25 anos para começar a produzir pinhão, o que é bastante tempo”, diz. Segundo Nêmora, há iniciativas importantes da Embrapa Florestas do Paraná no sentido de reduzir esse tempo de produção de pinhas. “Os pesquisadores têm estudado a técnica de enxertia da araucária. Eles utilizam um pedacinho de tecido da ponta de um pinheiro fêmea, que produz as pinhas, e o inserem em mudas jovens de araucárias. Dessa forma, as mudas carregam a memória genética do pinheiro adulto e, em cerca de 7 a 8 anos após o processo, essas mudas começam a produzir suas próprias pinhas”. De acordo com Jaime Martinez, um dos fundadores do Projeto Charão, a redução das matas de araucária no Brasil foi muito intensa, sobrando algo em torno de 3% a 5%, o que resultou em uma grande perda de habitat para as espécies. Papagaio-charão viaja mais de 400 km para comer pinhão da araucária — Foto: Raphael Kurz “Antigamente, o charão passava o período de reprodução e alimentação com o pinhão no próprio Rio Grande do Sul. Mas o corte do pinheiro avançou muito de forma clandestina até os anos 1980 e, com isso, o estado reduziu muito a capacidade de suporte do ambiente para o papagaio-charão”, afirma o professor da Universidade de Passo Fundo (UPF). A grande concentração de papagaios-charão se dá em Urupema, município catarinense com população de menos de 3 mil pessoas e que recebe muitos turistas para fotogravar a revoada diariamente até os dormitórios. No Wikiaves, dos 1.296 registros de fotos feitos no estado de Santa Catarina, 1.253 foram realizados em Urupema — Foto: Nêmora Prestes “Isso acontece porque os melhores remanescentes de florestas com araucárias que existem no mundo estão na Serra Catarinense. Os dormitórios estão localizados especialmente na região entre Urupema (SC) e Painel (RS), mas eles mudam periodicamente”, explica o ornitólogo e guia de observação de aves Raphael Sobania. No Wikiaves, dos 1.296 registros de fotos feitos no estado de Santa Catarina, 1.253 foram realizados em Urupema. Projeto Charão O Projeto Charão foi criado em 1991 e está completando 33 anos em 2024. A ideia surgiu porque havia uma preocupação dos pesquisadores com o sumiço de algumas populações normalmente vistas em janeiro no Parque Natural Municipal João Alberto Xavier da Cruz, no norte do Rio Grande do Sul, que retornavam somente em julho ou agosto. Pinhão vem de uma árvore típica do Sul do país, a araucária — Foto: Patrícia Nicoloso/iNaturalist As atividades do projeto são dedicadas ao estudo, conservação e preservação do papagaio-charão e do papagaio-de-peito-roxo. Nas mais de três décadas de existência dele, várias ações foram realizadas para ajudar a diminuir a captura desses animais, principalmente através da educação ambiental. Ligado à Associação Amigo do Meio Ambiente (AMA) e à Universidade de Passo Fundo (UPF), o projeto contribui também para interligar áreas de alimentação e reprodução das espécies. Em 1995, os pesquisadores começaram a detectar as rotas migratórias que os papagaios-charão faziam através da contagem de quantos papagaios eram vistos em diferentes lugares durante todo o ano. Araucária está na lista das espécies ameaçadas de extinção e são necessárias ações para estimular seu plantio e conservação — Foto: Jonathan Ehlert/iNaturalist “Monitoramos a população total da espécie desde quando a encontramos em Santa Catarina. Na época eram apenas oito mil indivíduos. Os papagaios eram fortemente capturados em seus ninhos para serem mantidos como animais de estimação”, destaca Nêmora. “Realizamos muitas palestras em diferentes segmentos da sociedade e isso fez com que a captura fosse minimizada. Não que nenhum papagaio atualmente seja retirado dos ninhos, mas diminuiu drasticamente”, completa. Educação ambiental “Temos realizados cursos para professores estimulando a trabalharem em suas disciplinas de sala de aula com a araucária, cujo nome é Resgate do Pinheiro-Brasileiro. Já foram dez edições nos estados no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Minas Gerais”, diz a bióloga. Com o curso, foram instruídos 573 professores oriundos de 84 municípios, representando 323 instituições de educação. O programa envolveu 12,7 mil alunos em atividades multidisciplinares com a araucária, implantando 143 viveiros florestais escolares que geraram 352 mil mudas de A. angustifolia. Ela também destaca a importância de parcerias políticas e da atuação de órgãos como Ibama e ICMBio para respaldar o trabalho construído ao longo dos anos. Na natureza, a araucária (Araucaria angustifolia), espécie florestal nativa brasileira, pode levar de 20 a 25 anos para produzir o pinhão — Foto: cbeier/iNaturalist Outro fruto do trabalho realizado pelos pesquisadores do Projeto Charão foi a aquisição da Reserva Particular do Patrimônio Natural Papagaios-de-Altitude, área de 46 hectares que está situada em Urupema (SC) e que recebe visitantes como quati, veado-catingueiro, ouriço-caixeiro, gato-do-mato, jaguatirica, onça-parda e outros animais. “Lá todo o pinhão é destinado de maneira estratégica aos papagaios. A reserva foi comprada neste local, pois toda a população migra para esta região durante a oferta de pinhão. Temos incentivado proprietários de terras a transformarem parte de suas áreas em RPPN e queremos criar uma RPPN no RS, como estratégia de conservação para a espécie”. Os dois sexos tem cor predominante verde, e são diferenciados pela máscara vermelha e espelhos vermelhos da asa mais evidentes no macho — Foto: Gabriel Freitas Vale lembrar que quem atua com espécie migratória tem dupla tarefa de conservação: proteger sítios reprodutivos e sítios de forrageamento. “Não é muito fácil porque o desafio para manter projetos de conservação esbarra sempre no financeiro. Não precisamos de dinheiro para nossa conta bancária, pois temos nossa profissão, mas precisamos de instituições que apoiem financeiramente o Projeto Charão para que possamos atuar ainda mais na conservação desta espécie maravilhosa e resistente”, ressalta Nêmora Prestes. “Meu sonho não é mostrar que somos honestos para a sociedade, pois o histórico do Projeto Charão já conta isso, mas encontrar uma instituição que possa reconhecer todo este esforço de conservação e adotar o Projeto Charão através de seu compromisso social”, finaliza. VÍDEOS: Destaques Terra da Gente
Pesquisadores temem impacto das enchentes do RS na reprodução de papagaios-charão
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