BBC News Brasil E assim aconteceu: 26 anos após a sua estreia, todas as seis temporadas da série “Sex and the City” chegaram à Netflix. Nos anos 1990, o público se identificou instantaneamente com esta comédia dramática de sucesso da HBO, baseada nas colunas da jornalista americana Candace Bushnell. Sua inovadora representação de quatro amigas -Carrie Bradshaw (Sarah Jessica Parker), Miranda Hobbs (Cynthia Nixon), Samantha Jones (Kim Cattrall) e Charlotte York (Kristin Davis)- mostrava mulheres inteligentes e bem-sucedidas, na casa dos 30 e 40 anos, morando, trabalhando e enfrentando o mundo dos relacionamentos em Nova York, nos Estados Unidos. Talvez não pareça hoje em dia, mas na época (quase três décadas atrás), este era um roteiro inovador. Ver mulheres sinceras, feministas e maliciosamente engraçadas, discutindo aspectos normalmente considerados tabus da vida sexual das mulheres, de forma tão aberta no horário nobre da TV era algo pioneiro, só comparável a outra grande série sobre um quarteto feminino que a precedeu, que foi Supergatas (1985-1992). Agora na plataforma de streaming, “Sex and the City” tem a chance de atrair novamente um imenso público, incluindo os antigos fãs que irão revê-la e uma nova audiência mais jovem, que poderá descobrir como é ter seu relacionamento rompido com uma nota em um Post-It; o que é ser “trissexual”; e, claro, as trágicas consequências de fumar um cigarro perto da janela em um arranha-céu. “Friends”, também dos anos 1990, ganhou uma incrível segunda vida junto à geração Z, quando começou a ser apresentada pela Netflix em 2015, nos Estados Unidos. A série foi o programa de TV de maior audiência no Reino Unido em 2018, quando chegou ao streaming no país. Será que !Sex and the City! está a caminho desse mesmo tipo de reavaliação por uma geração mais jovem, que não assistiu à série na primeira vez? E que impressão ela irá deixar, aos olhos de 2024? REPUTAÇÃO ATUAL JUNTO À GERAÇÃO Z Para muitos jovens da geração Z, na verdade, “Sex and the City” não é totalmente nova. Parte deles acredita que uma série transmitida antes que eles tivessem nascido já integra sua própria consciência cultural. “Ao longo de toda a minha vida, surgiram repetidamente referências a ‘Sex and the City'”, conta à BBC a jovem Estelle Bolon, de 23 anos. “Você sabe quando alguém adora a série; ‘And Just Like That…’ [a famosa frase de Carrie] aparece nas conversas; seu broche de flor inconfundível preso no casaco ou o pedido de um Cosmopolitan [a bebida preferida da personagem] como o primeiro coquetel.” Muitas pessoas desta geração provavelmente encontraram a série pela primeira vez online, nas redes sociais, onde cenas importantes são transformadas em memes populares. O pico foi perto de 2018, quando a revista americana The Cut comentou, em uma seleção dos melhores memes, que “alguma coisa relacionada ao humor irônico da série e à moda do início dos anos 2000 a torna propícia para brincadeiras na internet”. “Oh, a geração Z já descobriu ‘Sex and the City'”, afirma o jornalista millennial Evan Ross Katz. Ele assistiu à série completa “seis ou sete vezes” e já a comentou detalhadamente no seu podcast e na sua newsletter. “Ela circula no TikTok e vejo particularmente Miranda e Samantha sendo adoradas nas redes sociais; as pessoas também adoram demonstrar ódio a Carrie Bradshaw -injustamente, na minha opinião!” “Mas acho que a mudança da série para a Netflix pode fornecer uma oportunidade de expandir o seu contexto”, segundo Katz, “porque ‘Sex and The City’ sobreviveu nos anos 2020, em grande parte, com os memes, clipes e gifs. Agora, talvez as pessoas possam formar suas próprias opiniões.” Embora a série de Darren Star e Michael Patrick King tenha deixado seu impacto cultural sobre tudo, desde o feminismo até a moda, ela também se destacou por receber uma boa dose de críticas. Além de promover ativamente o consumismo e transformá-lo em fetiche, a série -que se passava em uma das cidades mais multiculturais do planeta- apresentava principalmente pessoas brancas e privilegiadas. E era salpicada de linguagem insensível às diferenças raciais, como a narração de Carrie comentando que Sum, uma empregada doméstica do leste asiático, “não era tão burra”. Havia também comentários grosseiros e ofensivos à comunidade LGBTQIA+. Em uma ocasião, Carrie disse às suas amigas: “Não sei nem se bissexualidade existe. Acho que é só uma escala para virar gay.” Em outro episódio, Samantha se queixa das trabalhadoras do sexo trans no lado de fora da sua cobertura: “Pago uma fortuna para morar em um bairro que é transado de dia e trans à noite.” Kareem Belfon tem 27 anos de idade e conta que é “relativamente novo” para “Sex and the City”. Ele assistiu à série pela primeira vez em 2022, mas é um grande fã. Ele chega a ouvir três dos maiores podcasts em inglês sobre a série: So I Got to Thinking, Every Outfit e Sentimental in the City. Mas, apesar da sua profunda admiração, ele reconhece algumas restrições óbvias em “Sex and the City”. “A série não sabia como falar sobre raça”, segundo Belfon. “E, quando falava, era um desastre.” “Quando aparecia uma pessoa de cor, ela era mostrada como puro estereótipo, fetichizada ou como objeto de risos. Assistindo com a visão de 2024 e acostumado a ver séries de TV que mostram personagens brancos e ricos e seus “problemas de brancos” (‘The White Lotus’, ‘Big Little Lies’ e ‘Succession’), fica claro que ‘Sex and the City’ não tinha a intenção de retratar pessoas de cor com sensibilidade.” Estelle Bolon tem a mesma impressão. Para ela, “é frustrante ver personagens que podem ser tão inspiradores e divertidos começarem a usar uma linguagem que nunca seria aceitável hoje em dia, discriminando completamente um grupo de pessoas”. É interessante observar que algumas dessas frases problemáticas foram corrigidas retroativamente pelo próprio público, novamente através dos memes. Um exemplo foi a hashtag #WokeCharlotte, de 2015, que zombava das cenas ofensivas da série, com Charlotte chamando a atenção das amigas pelas palavras mal colocadas. Mas, como sugere Katz, o fato de que a série envelheceu mal em alguns aspectos, como ocorre com todas as produções, não invalida seus sólidos pontos fortes. “As pessoas dizem que ‘Sex and the City’ é problemática para assistir de novo e, com certeza, elas não estão erradas”, segundo ele. “Mas acho que isso não considera todos os pontos que permanecem muito atuais… [De muitas outras formas] a série foi incrivelmente progressista na época e permanece assim até hoje.” ELEMENTOS QUE SALTAM AOS OLHOS Como o título obviamente sugere, o sexo aparece na série com frequência. Mas há relatos de que os jovens com menos de 30 anos estão fazendo menos sexo -e, em um estudo recente da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos Estados Unidos, metade dos espectadores da geração Z afirmaram que querem ver “menos sexo nas telas”. Neste cenário, será que “Sex and the City” seria escandalosa demais para eles? “Existem muitas discussões sobre a natureza recatada dessa geração”, segundo Katz. “Por isso, talvez o sexo possa impressioná-los. Mas não acho que seja uma série tão ‘sexy’, já que o sexo frequentemente aparece para causar risadas.” O que provavelmente irá saltar mais aos olhos na série é a quantidade de personagens fumando e a cultura da bebida em excesso, já que os jovens adultos atuais afirmam que preferem beber menos que as gerações anteriores. Mas o maior choque cultural de todos pode ser o fato de que os personagens têm dinheiro para pagar rodadas e mais rodadas de Cosmopolitans, além de lanches e almoços frequentes em restaurantes da moda, enquanto as pessoas de todas as idades lutam atualmente contra a crise do custo de vida. “Os novos espectadores podem assistir à série como escapismo aspiracional”, sugere Belfon, “e não como um retrato preciso de experiências vividas.” “Mas, novamente, eu pergunto se Carrie Bradshaw, uma mulher que gastava US$ 40 mil [cerca de R$ 207 mil] em sapatos, inspirava algum tipo de identificação em alguém.” Bolon assistiu a “Sex and the City” pela primeira vez em 2023, por recomendação de uma amiga. Ela acrescenta: “Gosto da série pelo seu lado engraçado, pela moda, pela narração extravagante e por destacar o significado da amizade.” “Mas certamente eu não discordaria de alguém que não gostasse de ‘Sex and The City’. Além dos momentos problemáticos, algumas pessoas simplesmente não suportam a Carrie e isso é justificável, ela é muito egocêntrica!” O caráter polêmico de Carrie sempre gerou polêmica e parece ter apenas se intensificado com o passar do tempo. Afinal, parte do seu comportamento, especialmente em relação às amigas, é realmente indefensável. Mas, como sugeriu a crítica de TV americana Emily Nussbaum em um famoso artigo na revista The New Yorker em 2013, suas evidentes imperfeições sempre fizeram parte do objetivo da série e foram fundamentais para sua complexidade. Nussbaum a chama de a “primeira anti-heroína não reconhecida”. “Carrie Bradshaw sempre será emblemática, mesmo quando for levemente insuportável”, afirma Belfon. Ele também assistiu às duas temporadas disponíveis da sequência de ‘Sex and the City’ (And Just Like That…) e pretende assistir novamente à série original na Netflix. “O que eu adoro na série, de forma geral, é que ela parece uma cápsula do tempo sobre sexo e relacionamentos, antes das redes sociais e dos aplicativos de namoro, mas os temas que ela aborda são atemporais.” Mas, afinal, será que “Sex and the City” irá repetir o sucesso de “Friends” na Netflix? Afinal, “Friends” também vem sendo questionada por cenas “problemáticas”, mas as críticas não impediram que ela atingisse enorme audiência. Kareem Belfon e Estelle Bolon estão confiantes de que Carrie, Samantha, Charlotte e Miranda serão um sucesso, mas talvez não na mesma escala do sexteto do Central Perk Café. “Eu assisti a ‘Friends’ quando chegou à Netflix e ainda assisto”, afirma Bolon. “É difícil dizer como algo será recebido quando chega a um novo público, mas acho que ‘Sex and the City’ certamente tem o potencial de apresentar elementos chamativos similares a ‘Friends’. Provavelmente não irei assistir de novo imediatamente, mas, com certeza, ela irá fazer parte da ‘minha lista’ da Netflix em algum momento.” Belfon indica que “Sex and the City” certamente leva vantagem sobre “Friends” em um grupo demográfico: ela se conecta melhor com a cultura gay. “Acho que sou a única pessoa viva que nunca assistiu a um episódio de ‘Friends'”, ele conta. “‘Sex and the City’ é simplesmente mais chique. E a maior parte dos meus amigos gays já assistiu; é absolutamente essencial.” De fato, basta observar o recente “renascimento” da série “Girls”, de Lena Dunham -frequentemente considerada a sucessora de “Sex and the City”- para perceber que existe a tendência de reavaliar séries antigas que retrataram o espírito da sua época. Mas isso não significa que não haja espaço para que a geração Z aprecie por si própria um grupo de amigas adultas na cidade grande. Em março, a HBO anunciou a contratação da estrela do filme “Clube da Luta para Meninas” (2023), Rachel Sennott, para escrever o piloto de uma série sobre “um grupo de amigos codependentes [que] se reencontram e enfrentam as mudanças que sofreram com o tempo que passou, a ambição e os novos relacionamentos”. Enquanto aguardamos para ver as semelhanças entre “Sex and the City” e a nova série de Sennott, Katz afirma que o principal legado da série dos anos 1990 que ele espera ver transmitido para a geração Z e seus produtores de TV é a forma de tratar o espectador. “Acho que ‘Sex and the City’ faz um ótimo trabalho ao reconhecer a inteligência do espectador”, explica ele. “Não acho que a série conduza o espectador de nenhuma forma e ela também é ousada no seu roteiro e nos seus personagens.” “Estou ansioso para que a geração Z se apaixone por ela da mesma forma que aconteceu comigo.” “Sex and the City” está disponível no Brasil no Max e na Netflix. Este texto foi originalmente publicado aqui.