O filme financiado pelo Kremlin que se tornou sucesso de público na Rússia criticando a censura

O filme financiado pelo Kremlin que se tornou sucesso de público na Rússia criticando a censura

BBC News Brasil Ele era adorado… até que as pessoas começaram a criticá-lo. O diretor de cinema americano Michael Lockshin passou a maior parte da infância em Moscou. E, em 2020, ele era de total confiança para a indústria cinematográfica russa. Tanto é verdade que o fundo estatal de cinema do país contribuiu com 40% do dinheiro para a produção do seu filme “O Mestre e Margarita”, baseado no romance clássico da era de Stalin, escrito por Mikhail Bulgakov (1891-1940). Hoje, se Lockshin colocasse os pés na Rússia, ele poderia ser preso, com base nas novas leis que criminalizaram as críticas à invasão da Ucrânia. “Eles me chamaram de criminoso, eles me chamaram de terrorista na TV estatal”, contou Lockshin à BBC. Ele se refere aos comentaristas favoráveis ao presidente russo, Vladimir Putin, que atacaram a ele e ao seu filme. O diretor de “O Mestre e Margarita” conta como um filme financiado pelo Kremlin passou a ser atacado pelos partidários do governo – e acabou se tornando um sucesso de bilheteria na Rússia. ‘Russofobia’ Os problemas começaram logo depois do início da invasão russa, em fevereiro de 2022. Lockshin morava em Los Angeles, nos Estados Unidos. Ele estava editando o filme, quando fez uma postagem nas redes sociais em apoio à Ucrânia. Depois disso, o filme enfrentou uma batalha de dois anos para ser concluído. O nome do diretor foi retirado de todo o material promocional. E, quando o filme finalmente estreou na Rússia, há alguns meses, começaram os ataques de influentes apoiadores do Kremlin. Um importante canal do Telegram chamou Lockshin de russofóbico e o grupo de direita Chamado do Povo defendeu que ele seja acusado criminalmente de promover inverdades. O apresentador de televisão Vladimir Solovyov perguntou no seu programa “como este filme impatriótico foi autorizado”, enquanto outro apresentador de TV, Tigran Keosayan – casado com a editora-chefe da TV estatal russa – pediu uma investigação para determinar como o filme foi produzido. Como declarou o produtor de cinema russo Ivan Filippov à BBC News Rússia, “nunca na história da cinematografia russa, um filme causou tanta reação da propaganda”. O romance de Bulgakov sobre um escritor que combate a opressão estatal nos anos 1930 parece ter previsto o que seria a luta do próprio Lockshin para levar sua obra para o mundo. Na tela e fora dela, “O Mestre e Margarita” é um reflexo brutal da tensa situação vivida pelos artistas na era de Josef Stalin (1878-1953) – e na Rússia atual. Lockshin tinha cinco anos de idade em 1986, quando sua família mudou para o que era, na época, a União Soviética. Seu pai declarou que vinha sendo perseguido pelo FBI devido à sua simpatia com o comunismo. A chegada da família foi motivo de celebração na capital russa. Depois de cursar a universidade em Moscou, Lockshin começou a dividir seu tempo entre os Estados Unidos e a Rússia, até se mudar para Los Angeles em 2021. Seu primeiro filme, “Cidade de Gelo” (2020), foi baseado no livro infantil “Os Patins de Prata” (Ed. Abril, 1972), da escritora americana Mary Mapes Dodge (1831-1905). O filme fez sucesso na Rússia e foi a primeira produção original em língua russa para a Netflix. ‘Vivíamos em um mundo muito diferente’ Fora da Rússia, o romance épico de Bulgakov é mais admirado do que lido. Mas seus admiradores incluem a cantora e escritora americana Patti Smith, além de Mick Jagger, que usou o livro como inspiração para a canção “Sympathy for the Devil”, gravada pelos Rolling Stones. Como muitas outras pessoas que estudaram na Rússia, Lockshin leu o livro quando era jovem. Ele ficou encantado com aquele turbilhão de romance, humor absurdo e crítica social, que inclui uma visita do demônio a Moscou, acompanhado por um gato do tamanho de uma criança humana; um caso de amor entre um escritor não identificado conhecido como Mestre e sua musa, a bela e casada Margarita; e trechos de um romance que o Mestre está escrevendo sobre Jesus e Pôncio Pilatos, com críticas implícitas às autoridades soviéticas. O livro é complexo e os produtores russos pediram a Lockshin que elaborasse uma ideia de adaptação para o cinema. Ele e seu corroteirista, Roman Kantor, decidiram concentrar a história nos problemas comuns entre Bulgakov e o Mestre. As peças teatrais de Bulgakov foram elogiadas e, depois, proibidas por Stalin. Ele começou a escrever “O Mestre e Margarita” em 1928 e revisou a obra até pouco antes de morrer, em 1940. Bulgakov sabia que seu romance não poderia ser lido no regime stalinista e, por isso, nunca tentou publicá-lo. Uma primeira versão censurada só apareceu em uma revista russa em 1966 – 13 anos depois da morte de Stalin. Apesar da temática antiautoritarista do filme, Lockshin afirma que não se preocupou com reações negativas dos políticos quando começou o projeto, em 2020. “Nós o apresentamos como um filme sobre um escritor censurado, ainda mais do que no livro”, ele conta. “Um escritor censurado nos anos 1930, sob o governo de Stalin, [falando] muito sobre censura, repressão, expurgos e o terror da era de Stalin.” “Tínhamos consciência de que aqueles temas eram relevantes para a Rússia de Putin naquela época, mas a censura estava muito longe do ponto em que está hoje. É difícil imaginar que, apenas três anos atrás, vivíamos em um mundo muito diferente.” O filme é uma ambiciosa e envolvente mistura de política e fantasia. Às vezes, ele lembra “Brazil – O Filme” (1985), de Terry Gilliam, mas também é fundamentado no realismo da luta do Mestre contra o Estado. No filme, o Mestre (interpretado por Yevgeny Tsyganov) é um dramaturgo e sua obra sobre Pilatos é proibida pelas autoridades. O filme inclui números musicais completos, trazidos à vida das páginas do livro, enquanto Margarita (Yulia Snigir) preside, como Rainha da Noite, a fantasmagórica festa à meia-noite, promovida pelo Demônio. Claes Bang (“Mal de Família”, 2022) recebeu um papel pequeno interpretando Pilatos, enquanto August Diehl (“Uma Vida Oculta”, 2019) tem à sua frente um papel maior, como o Demônio. Durante todo o ano de 2022, o filme ficou “no limbo”, como descreve Lockshin. O desenrolar da invasão da Ucrânia levantava dúvidas sobre o seu lançamento. A Universal International pretendia distribuir o filme na Rússia, mas a empresa saiu do país, ao lado de muitas outras companhias cinematográficas ocidentais. E o mais assustador foram as novas leis que entraram em vigor na Rússia. Uma delas previa penas de até 15 anos de prisão para quem espalhasse as chamadas “informações falsas”. Lockshin conta que seus produtores russos disseram a ele na época: “Você percebe que agora será um criminoso”, simplesmente devido às suas postagens em favor da Ucrânia. As mudanças políticas do mundo real fizeram com que “O Mestre e Margarita” se tornasse ainda mais imprevisível. Em uma cena criada para o filme, o Mestre é convocado perante um tribunal na União dos Escritores, em uma espécie de julgamento de fachada. Os críticos atacam sua peça antistalinista sobre Pilatos, em termos similares aos comentários negativos que, hoje, são dirigidos ao filme de Lockshin na Rússia. “Ele se esconde por trás de uma obra histórica para fazer duras críticas à União Soviética”, acusam os adversários do Mestre, no filme. Lockshin afirma que a cena foi baseada nas transcrições históricas dos julgamentos da era stalinista. Mas “enquanto editávamos o filme, aquelas cenas se tornavam cada vez mais atuais, quase de forma mística”. Outras falas saltam aos olhos com sua ressonância com a era contemporânea – até mesmo algumas retiradas diretamente do romance. Nas duas versões, Jesus (chamado de Yeshua) afirma que “será construído um novo templo da verdade”. Pilatos responde com uma pergunta: “O que é a verdade?” O crítico de cinema russo exilado Anton Dolin declarou ao The New York Times que “o filme coincidiu surpreendentemente com o momento histórico que a Rússia está atravessando”. Sucesso de público O motivo que levou o filme a ser finalmente lançado na Rússia é objeto de especulação. Lockshin não recebeu nenhuma explicação oficial. “Espero que, algum dia, alguém nos diga a verdade.” Ele acredita que proibir o filme traria constrangimento, já que foi usado dinheiro russo na sua produção. E também houve uma enxurrada de publicidade sobre o filme antes mesmo das filmagens, o que criou grandes expectativas. Seu lançamento atraiu um público numeroso e apaixonado. Um produtor de cinema russo conta que, quando viu o filme, grande parte do público aplaudiu a produção. “As pessoas estão felizes por poderem vivenciar e assistir a este filme que traz uma mensagem claramente antitotalitarista e contra o Estado repressivo”, declarou ele. O cineasta ucraniano Alexander Rodnyansky declarou à revista Vanity Fair que, em meio a tantas reações positivas, “descartar o filme teria causado grande mal-estar”. Oficialmente, o filme custou US$ 17 milhões (cerca de R$ 92 milhões) e sua bilheteria na Rússia já rendeu US$ 26 milhões (cerca de R$ 140 milhões) – um valor enorme para o país, muito acima de todas as expectativas. O filme ainda não foi distribuído fora da Rússia. Normalmente, filmes não convencionais em língua não inglesa já enfrentam dificuldades, mas “O Mestre e Margarita” envolve outras questões jurídicas. “Estamos tentando conseguir todos os direitos fora da Rússia, para separar as vendas internacionais”, explica Lockshin. Ele acredita que os produtores estão perto de resolver a questão, para poderem começar a procurar distribuidores na Europa e nos Estados Unidos. Lockshin fixou moradia permanente em Los Angeles. Mas ele afirma que não se sente um exilado, pois sempre teve conexões com os Estados Unidos e com a Rússia. “É claro que estou triste por não poder voltar [para a Rússia] no futuro próximo”, declarou ele. Sobre a mirabolante reviravolta do establishment russo contra ele, Lockshin afirma que “foi uma grande ironia e, de certa forma, muito engraçado, mas também assustador.” “Foi uma mistura de todas estas emoções. Mas, sabe, fico pensando como Bulgakov estaria olhando para tudo isso. Ele estaria simplesmente dando gargalhadas.” Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.

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