No Carnaval de 2016, Brasil mostra que cansou de brigar consigo mesmo

No Carnaval de 2016, Brasil mostra que cansou de brigar consigo mesmo

Passei a adolescência sem conhecer o Carnaval de rua. O Rio, minha cidade natal e onde eu costumava passar férias, tinha alguns blocos e cordões remanescentes do começo do século 20, como o Bola Preta. Mas eles se concentravam no centro da cidade; na zona Sul, já existia a Banda de Ipanema, que ainda não era o tsunami que é hoje.   O Carnaval carioca acontecia, basicamente, em dois espaços bem demarcados: os desfiles das escolas de samba e os bailes nos clubes. Tudo devidamente televisionado, para que ninguém sentisse estar perdendo alguma coisa ficando em casa.   São Paulo, então, era mesmo o “túmulo do samba” citado por Vinícius de Morais. A cidade não tinha tradição carnavalesca, e todo mundo que podia fugia para longe durante o feriado. Era comum ouvir dos mais velhos que Carnaval bom era o de antigamente, e que a festa atual só acontecia para as câmeras da TV. Imposição da ditadura militar, que ficava nervosa com grandes aglomerações ao ar livre? Provavelmente. Claro que isso mudou com o tempo. Antes de mais nada, a democracia voltou. Aí São Paulo ganhou seu sambódromo, e suas escolas cresceram em luxo e importância. Mas foi no Rio que começou uma revolução: talvez inspirados por Recife e Salvador, onde a folia nas ruas jamais arrefeceu, os cariocas começaram a criar novos blocos e a ocupar bairros outrora tranquilos.   Demorou, mas a onda chegou a São Paulo. Já faz alguns anos que os blocos vêm brotando feito grama na capital paulista. Em 2016, tornaram-se um matagal. Mais de cem novas agremiações foram às ruas, e os paulistanos descolados perderam a vergonha de ficar na cidade durante o reinado de Momo. Opções não faltaram —e reclamações também, principalmente na Vila Madalena.   No Rio, a ausência de patrocínio das grandes empresas às escolas do Grupo Especial não teve efeitos visíveis. Todas saíram opulentas como sempre, e, pelo menos dessa vez, os enredos não cantaram as maravilhas do shampoo nem louvaram ditadores africanos. Deu até para desconfiar que, nos tempos das vacas gordas, os patrocínios corporativos não iam exatamente para as alegorias na avenida.   Curiosamente, a política mal deu as caras. Sim, teve um boneco de Olinda homenageando o juiz Sergio Moro, e a marchinha do “japonês da Federal” foi uma das mais tocadas. Mas a máscara de Nestor Cerveró, “hit” proibido de 2015, não teve sucessor à altura. O grande vilão acabou sendo o mosquito da zika.   Talvez o país esteja cansado de brigar consigo mesmo, e tirado alguns dias de folga. Até gente que questionou a pertinência de uma celebração em plena época de crise depois se rendeu, postando fotos descontraídas nas redes sociais.   Problemas à parte, o fato é que esse Carnaval foi relativamente tranquilo e democrático. Quem foi a personalidade que mais se destacou? Pois é, não houve. Ou houve muitas: o povo que saiu nos blocos. A folia brasileira voltou às ruas de norte a sul, e não vai sair tão cedo. Sinal de que talvez não estejamos tão mal quanto achávamos. Tony Goes Salvar artigos Recurso exclusivo para assinantes assine ou faça login Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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