Não se pode limitar o desmedido

Não se pode limitar o desmedido

Se a face do “bolsonarismo moderado” é Tarcísio de Freitas, então ela é cheia de buracos. Não poderia deixar de ser, se pensarmos bem, pois há uma evidente incompatibilidade entre as duas palavras, substantivo e adjetivo. O sentido geral do latim “modus”, ancestral da moderação, é o de medida. É daí que vêm palavras como “incômodo”, o que está fora da medida, o que não cabe direito, e (depois de uma tabelinha com o italiano) “modelo”, que tem as medidas que se quer copiar. Por meio do francês, o velho “modus” deu também em “moda”, estilo, maneira de fazer. Com escala no espanhol, chegaram-nos ainda “molde” e “moldura”, que mantêm relações óbvias com a ideia original de medida. À luz dessas pistas etimológicas, qual será o incômodo provocado pela atual moda de tratar como moderado —ou seja, comedido, prudente, que mantém tudo na medida justa, sem falta nem excesso— um político que tem como molde e modelo um expoente caricato da extrema direita? Em que moldura sociopolítica isso faria sentido? O resultado é que a tal face do “bolsonarismo moderado” tem pelo menos tantos buracos quanto os que a PM do secretário de Segurança de São Paulo, Guilherme Derrite —bolsonarista que dispensa modulações—, fura com autorização superior e sem moderação em pretos e pobres. Imodesta —isto é, inconformada com todas as suas medidas—, a letalidade da polícia paulista cresceu 138% no primeiro trimestre em comparação com o mesmo período do ano passado. Como se sabe, isso agrada à vasta parcela dos eleitores que confunde barbárie com política de segurança pública. Denunciado na ONU, o “moderado” Tarcísio disse que não está “nem aí”. É que sua moderação, mesmo ilusória, precisa ser ela própria moderada, moderadíssima, sob pena de o desautorizarem como guardião do legado de extremismo, golpismo, populismo, má-fé, exploração do medo e do ódio, truculência, ignorância e mentira —tudo aquilo que caracteriza o bolsonarismo. Deve-se reconhecer que o ex-presidente hoje inelegível não inventou nenhum desses graves defeitos. No entanto, tomou-os para si e os elevou a uma potência política —ao mesmo tempo que os rebaixava a uma profundidade moral— jamais sonhadas, uma e outra, por estas bandas. Virou grife. Colunas e Blogs Receba no seu email uma seleção de colunas e blogs da Folha Eis o problema de quem tenta se vender como herdeiro “moderado” de uma desgraça dessas: se maneirar demais, o eleitor ultraconservador lhe dará as costas para procurar alguém menos comedido. O estabelecimento de limites passa a afetar então apenas certos modos, certas maneiras. Assim, não arremedar moribundos com falta de ar, rindo como uma hiena psicopata, começa a ser tratado como indício de suficiente moderação por órfãos de uma direita democrática que já não tem votos. Em termos eleitorais, é possível compreender a tentativa. O problema é que não faz o menor sentido tentar encontrar a medida certa do que é desmedido por definição. Nota triste: não teria havido meu primeiro livro, “O Homem que Matou o Escritor”, de 2000, se nos anos 1990 eu não lesse —mais do que isso, estudasse— os livros de Paul Auster, que morreu de câncer aos 77 anos. Ele tinha razão: a ficção literária é “o único lugar do mundo em que dois estranhos podem se encontrar em termos de absoluta intimidade”. Thanks, man. LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

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