Na última quinta-feira (20), quem entrava no Itaú Cultural, no início da avenida Paulista (zona central de São Paulo), sentia um clima de Broadway no ar. Mais de 200 candidatos aguardavam ansiosos o teste de elenco do musical que vai homenagear Martinho da Vila, “Martinho Coração de Rei”. Do banheiro masculino, uma voz de tenor ecoava forte, treinando várias notas. Um outro andava pelos corredores com um grande fone de ouvido, repassando as músicas do poeta de Vila Isabel (zona norte do Rio) antes do momento aguardado e temido: ficar cara a cara com o diretor Miguel Falabella, numa oportunidade que podia durar poucos segundos. O F5 acompanhou por cerca de uma hora os testes de elenco. Naquele momento, apenas atrizes e cantoras eram testadas. Subindo as notas como na Broadway, elas botavam um toque de “Fantasma da Ópera” em pérolas martinianas como “Ex-Amor”, “Disritmia” (aquela hoje polêmica do “Vem logo, vem curar seu nego / que chegou de porre lá da boemia”) e “Kizomba, Festa da Raça”, samba-enredo que deu à Vila Isabel seu primeiro título em 1988.Mas receber um “OK, obrigado” de Falabella com poucos segundos não era necessariamente sinônimo de fracasso. Sim, se a candidata desafinasse de cara, a buzina era mais rápida do que no saudoso Cassino do Chacrinha. Em outros casos, porém, dois ou três versos de um samba cantado com afinação eram suficientes pra comovê-lo e pedir para a candidata parar, provavelmente aprovada. O problema é que a peneira é muito cruel: de 250 finalistas, apenas 18 devem subir ao palco do Teatro Sérgio Cardoso quando o musical estrear em setembro. CHUTE AO GOL Dividido, Falabella fica entre a empatia com seus colegas atores e a pressão para levantar a lona do espetáculo. “Essa parte [do teste de elenco] é horrível. Eu por mim queria botar todo mundo. Mas eu tenho um espetáculo na cabeça. Às vezes a pessoa canta bem, é afinada, mas não tem a embocadura [o encaixe] que é fundamental pro espetáculo. Tenho uma semana para levantar a parte musical. Se a pessoa não chuta logo pra gol, vai ficando pra trás”, explica. Mesmo próximo de Martinho, já que é muito amigo de sua filha Mart’nália, ele hesitou em aceitar o novo convite do idealizador Jô Santana depois do sucesso de “Marrom, O Musical”, que contou a vida de Alcione. “Eu não queria mais fazer biografia. Mas fiquei de pensar, e toparia se tivesse um outro olhar. Não queria ficar só naquela coisa do Google: com quem casou, quantos filhos teve etc.” Em outras palavras: mais do que a história de vida de Martinho, interessava sua música, sua obra, seu samba –sem perder o que Falabella chama de lado “espetaculoso”, treinado em musicais da Broadway como “Os Produtores” e “Alô, Dolly!”. Foi a dramaturga Helena Teodoro, uma das maiores pesquisadoras da cultura negra e do samba no país, que o ajudou a enxergar a história do sambista a partir da sua africanidade. “O Martinho faz uma ligação fundamental da nossa identidade enquanto povo. Essa coisa da cultura preta ser apagada o tempo todo é brutal. E nos faz mal a todos, nos rouba uma identidade e uma civilização”, diz o diretor. FAMÍLIA NO PALCO Na quinta, uma das candidatas fazendo teste era Dandara Ventapane, de 32 anos, neta de Martinho e atual porta-bandeira da escola de samba Paraíso do Tuiuti. Longe dos musicais há dez anos, ela se mostra empolgada em contar a história do avô. “Ele foi o primeiro a furar a bolha do samba, dar a ele uma grandeza nacional. E ainda a fazer um intercâmbio na música entre os países de língua portuguesa. Não é pouca coisa”, diz. Jô Santana, que se tornou o maior produtor de musicais em homenagem a artistas negros do Brasil, conta que a história de Martinho deveria fechar uma trilogia que se iniciou com Cartola e Dona Ivone Lara. “Mas aí veio a pandemia… e eu sou muito louco por Alcione. Falei pra ele: ‘Martinho, você vai ter que esperar um pouquinho porque eu vou passar a Marrom na frente’. Ele só falou daquele jeito dele: ‘Tudo bem, é minha irmã’”, conta, aos risos. “O importante é homenagear com flores em vida. Martinho tem um lado que ninguém conhece. É um intelectual, com mais de 30 livros lançados. E é o homem que trouxe Mandela ao Brasil”, lembra. Santana faz suspense e não dá detalhes sobre como será o espetáculo. Mas confirma que não será um musical linear, contando a história de Martinho do começo da vida até o presente; e que vários atores vão se revezar no papel do sambista, a depender da fase da vida ou da obra. Quanto a Falabella, que não para nunca, ele começa a preparação de “Martinho Coração de Rei” enquanto termina de ensaiar uma nova versão de seu maior sucesso, “A Partilha”. A comédia, que estreou há 33 anos, será encenada pela primeira vez só com atrizes pretas. Ele se emociona e vai às lágrimas ao falar dessa nova versão. “É lindo trazer ‘A Partilha’ de volta com esse elenco da diversidade. Lá atrás, quando escrevi essa peça, nunca imaginei quatro atrizes pretas fazendo esse texto. É bonito esse andar do mundo. E a gente, como artista, tem que andar junto.” Thiago Stivaletti Salvar artigos Recurso exclusivo para assinantes assine ou faça login Thiago Stivaletti é jornalista e crítico de cinema, TV e streaming. Começou a carreira como repórter na Folha de S. Paulo e foi colunista do portal UOL. Como roteirista, escreveu para o Vídeo Show (Globo) e o TVZ (Multishow).