Presente na audiência, Gisèle reagiu às primeiras declarações do ex-marido. “Para mim é difícil ouvi-lo. Durante 50 anos vivi com um homem que não teria imaginado nem por um segundo que pudesse fazer isso. Eu tinha total confiança neste homem”, lamentou. Após a fala da ex-mulher, Dominique pediu perdão a ela e disse que ainda a ama, apesar dos crimes que cometeu: “Eu era louco por ela, ela se tornou aquela que substituiu tudo. Eu a amava imensamente, como ainda amo. Eu a amei bem por 40 anos e a amei mal por 10. Eu estraguei tudo, perdi tudo. Eu nunca deveria ter feito isso”. Ao sair do tribunal, no intervalo da audiência, após ouvir o depoimento de Dominique, Gisèle foi muito aplaudida por dezenas de pessoas que estão no local para apoiá-la e recebeu um buquê de flores (veja acima). Com um sorriso no rosto e agradecendo as palavras de apoio que recebia, ela preferiu não dar declarações à imprensa, no entanto. Gisèle Pélicot agradece apoio ao sair do tribunal — Foto: Christophe SIMON / AFP Gisèle deu depoimento forte “Ela escapou milagrosamente da contaminação pelo HIV e pelas hepatites B e C, mas contraiu quatro doenças sexualmente transmissíveis, necessitando de tratamento com antibióticos, incluindo um por via intramuscular”, afirmou a médica. No mesmo dia, ela também falou pela primeira vez sobre tudo que sofreu: “Assisti a todos os vídeos. Não são cenas de sexo, são cenas de estupro; dois, três deles sobre mim. Fui sacrificada no altar do vício. Quando vemos essa mulher, drogada, maltratada, morta na cama… Claro que o corpo não está frio, está quente, mas eu estou como se estivesse morta. Esses homens estão me contaminando, aproveitando-se de mim”, declarou. Além do ex-marido, que pode pegar até 20 anos de prisão, mais 50 homens, com idades entre 26 e 74 anos e perfis diversos, respondem pelos crimes que estão sendo julgados; 18 deles estão em prisão preventiva. Ao serem questionados pelo juiz, 35 réus se declararam inocentes e 13, culpados. Um deles está foragido e outro não compareceu ao tribunal. Ao ser questionada sobre os 35 que alegam inocência, Gisèle não poupou os abusadores e ressaltou o fato de nenhum deles ter denunciado o que ela vinha sofrendo. “Que eles reconheçam os fatos, o contrário é insuportável. Que eles tenham, pelo menos uma vez na vida, a responsabilidade de reconhecer seus atos. Estes senhores permitiram-se entrar na minha casa, não me violaram com uma arma apontada à cabeça. Estupraram-me com toda a consciência. Por que não foram à delegacia? Até um telefonema anônimo poderia salvar minha vida”, afirmou. A divulgação do caso ao público foi uma escolha de Gisèle, de 72 anos. Segundo um de seus advogados, ela renunciou ao seu direito ao anonimato para que “isso nunca mais aconteça” e porque um julgamento a portas fechadas era “o que seus agressores queriam”. Segundo a imprensa que acompanha o caso, durante todo seu depoimento, que durou duas horas antes de um intervalo para almoço, a francesa se mostrou firme. No entanto, ao juiz, ela admitiu: “Dentro de mim sou um campo de ruínas. A fachada é sólida, mas por trás dela…” Gisèle Pelicót descobriu os estupros no dia 19 de setembro de 2020. Após o marido ser flagrado filmando sob as saias de três mulheres em um supermercado, ela foi intimida a depor na delegacia e um policial a mostrou uma das imagens encontradas no computador de Dominique. “Em 50 anos não tivemos uma vida linear, mas sempre nos mantivemos unidos. Problemas financeiros, problemas de relacionamento, problemas de saúde… Sempre apoiei meu marido. Tenho um sentimento de nojo, tínhamos tudo para sermos felizes, tudo. Não entendo como ele conseguiu chegar a isso”, lamenta. Réus sendo orientados por advogada durante audiência — Foto: Christophe SIMON / AFP Ex-marido e mais 50 homens são julgados por crime A maioria dos 50 coacusados pelos crimes esteve apenas uma vez na casa do réu principal, na cidade de Mazan, no sul da França. Dez deles estiveram até seis vezes no local. O marido da vítima não pedia dinheiro em troca. Os acusados não sofrem patologias psicológicas significativas, embora tenham um sentimento de “onipotência” sobre o corpo feminino, segundo especialistas. Muitos afirmam que acreditavam estar participando das fantasias do casal. Segundo o marido, “todos sabiam” que sua esposa estava drogada sem o seu consentimento. Segundo a investigação, “cada um dispunha de seu livre arbítrio” e poderia ter “partido” ao perceber a situação. Os investigadores identificaram 92 estupros desde 2011, quando o casal vivia na região de Paris, mas principalmente a partir de 2013, ao se mudarem para Mazan, até 2020. O ex-funcionário da empresa de energia elétrica EDF administrava um ansiolítico forte à esposa e determinava que os homens, contatados no site de encontros coco.fr – já desativado – não a acordassem. Também os orientava a não usar perfume ou tabaco, aquecer as mãos com água quente e tirar a roupa na cozinha, para evitar que fossem esquecidas no quarto. Protesto na porta do tribunal — Foto: Christophe SIMON / AFP