Desastre do AF447: por que um avião ‘inderrubável’ caiu no Atlântico e chocou o mundo

Desastre do AF447: por que um avião ‘inderrubável’ caiu no Atlântico e chocou o mundo

A tragédia do voo AF 447, que deixou 228 mortos, permaneceu anos cercada de mistério. Muitos consideravam impossível que um avião daqueles, um Airbus A330-200, um dos mais modernos do mundo, simplesmente desaparecesse em uma rota intercontinental. As respostas só vieram quase dois anos depois, quando os destroços do avião, incluindo as caixas-pretas, foram encontradas no fundo do oceano. Descobriu-se então, que, em menos de cinco minutos, um voo absolutamente normal se transformou numa tragédia. Na noite de 31 de maio, o Airbus decolou do aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio. Na cabine de comando estavam o comandante, Marc Dubois, de 58 anos, o copiloto, Pierre-Cédric Bonin, de 32 anos, e um terceiro piloto, David Robert, de 37 anos. A presença de pelo menos três tripulantes é padrão em voos transatlânticos, para garantir que nenhum dos membros ultrapasse o limite máximo de horas de trabalho estabelecido, como medida de segurança na aviação comercial. Justiça francesa absolve Air France e Airbus pelas 228 mortes no voo Rio-Paris, em 2009 — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução “A Air France utilizava três pilotos nessa rotação. A maior parte das outras companhias usa quatro, sendo dois comandantes e dois copilotos que se revezam”, afirma o escritor e aviador Ivan Sant’Anna, autor de livros sobre o tema. Após a decolagem, Robert se dirigiu à área de descanso, próxima à cabine de comando. Ele retornaria ao cockpit para render o comandante Dubois poucas horas antes do acidente. Robert era o membro da tripulação com mais horas voadas no Airbus A330. Já Bonin, que pilotava a aeronave durante o percurso, era o menos experiente. “Isso não significa que ele não podia pilotar o voo”, diz Sant’Anna. “Todos os pilotos precisam fazer tudo o que o comandante faz, eles são treinados pra isso.” Falha nas sondas pitot A aviação comercial moderna é regulada por diversas medidas de segurança para prevenir acidentes. Um avião que cruza o oceano tem seus sistemas essenciais projetados com várias camadas de redundância, para que, caso um componente falhe, o outro assuma a sua função. Isso é verdade para o Airbus A330 que fazia a rota entre o Rio e Paris. Inclusive, ele havia passado por um ciclo de manutenção em abril daquele ano. No voo AF 447, porém, uma falha técnica ocorreu. Ivan Sant’Anna explica que os aviões são equipados com um aparelho chamado sondas pitot, ou tubos de pitot, literalmente tubos acoplados na parte externa do avião, que medem a velocidade do avião em relação ao ar – um parâmetro importantíssimo para determinar a sustentação da aeronave. Esses dados alimentam os computadores de bordo, os sistemas de navegação, e são usados pelo piloto automático, normalmente ativo em toda a fase de voo de cruzeiro. Em junho de 2009, porém, sabia-se que as sondas que equipam aquele Airbus podiam, em determinadas condições, acumular cristais de gelo, impedindo a passagem do ar pelo sistema. Mas por que, afinal, os tubos não foram trocados antes? Apesar de ser um equipamento essencial, essa falha não era considerada grave, segundo o relatório final do acidente, produzido pelo BEA (o órgão que investiga acidentes aéreos na França). Em primeiro lugar, a falha era temporária, ela só durava poucos minutos, enquanto os sistemas anticongelamento não entravam em ação. Em segundo lugar, quando ela ocorresse, havia um procedimento estabelecido a ser seguido pelos pilotos, que deveriam fazê-lo de memória, sem consultar nenhum manual. “A falha dos tubos pitot não são graves o suficiente para explicar a queda do voo AF 447”, afirma Sant’Anna. A Air France não só sabia desse defeito como estava trocando as sondas por um modelo mais moderno em sua frota, que não congelava. Inclusive, assim que chegasse em Paris, o Airbus A330 vindo do Rio seria recolhido para que essa troca fosse efetuada. Tempestade Esses cristais de gelo poderiam se formar nos tubos em algumas condições específicas, como durante a passagem da aeronave por uma tempestade. Tempestades nessa rota sobre o Atlântico são comuns nesta época do ano. Naquela noite, em 2019, dezenas de voos ligando a América do Sul e a Europa atravessaram nuvens de chuva, em questão de minutos antes e depois do AF447. O relatório do BEA afirma, no entanto, que a conversa na cabine de comando do voo da Air France indicava nervosismo por parte de Bonin, o menos experiente, para enfrentar a condição meteorológica. Dubois, o comandante, não parece notar a insegurança do colega. Ele vai descansar no sarcófago (área de descanso especial para os tripulantes) em seguida, mas não passa instruções claras para Bonin nem para Robert, que assume seu lugar no lado esquerdo do cockpit, sobre como lidar com a tempestade à frente. É normal, nesses casos, que os pilotos decidam desviar da rota prevista pra evitar turbulências de maior intensidade. Bonin e Robert optam tardiamente por uma rota que a maioria dos voos que atravessavam o Atlântico naquela noite não fez, também indicando insegurança da tripulação em suas decisões. Perda do piloto automático Às 2h10m05 UTC (o horário universal da aviação), enquanto o voo AF 447 passa por uma área de turbulência, cristais de gelo se acumulam nos tubos de pitot, que deixam de registrar dados válidos de velocidade. Quando isso ocorre, o piloto automático desliga automaticamente e passa o controle dos sistemas para o piloto. “Eu tenho os controles”, avisa Bonin a Robert, indicando que ele assumiria a pilotagem. Em um voo sem intercorrências, aviões são comandados na maior parte do tempo, de pouco depois da decolagem até pouco antes do pouso, pelo piloto automático. A tripulação monitora os parâmetros de voo e fala com o controle de tráfego aéreo quando necessário. O voo de cruzeiro em piloto automático é chamado de “modo normal” – nele, os computadores de bordo controlam diversos parâmetros, como inclinação das asas e dos estabilizadores, para que a aeronave permaneça estável no ar. Como o modo normal não estava ativo, o avião passou para o “modo alternado 2”, em que apenas alguns parâmetros são controlados automaticamente, e o piloto passa a ser responsável pela sustentação do avião. De acordo com os dados das caixas-pretas, presentes no relatório do BEA, Bonin faz correções exageradas nos comandos de direção desde o momento em que o Airbus entra em modo alternado. Erro fatal Ao mesmo tempo, Bonin puxa o “sidestick”, a alavanca que ordena manobras para o avião, totalmente para trás, fazendo com que o nariz da aeronave aponte para cima, e ela comece a ganhar altitude. Esse seria um erro fatal. Robert não percebe que Bonin levanta o nariz do avião até que seja tarde demais. Isso porque, no Airbus, os “sidesticks” ficam do lado externo do painel de controle. Muitos especialistas apontam que um acidente semelhante não ocorreria num Boeing, por exemplo. Avião da Air France durante troca de tubo de pitot, consequência do acidente de 2009 — Foto: Divulgação A Boeing não utiliza “sidesticks” em seus modelos, e sim manches convencionais, que ficam na frente do piloto. Cada piloto tem o seu, e ambos são conectados, de forma que o co-piloto perceberia imediatamente uma atitude fora do padrão. “O que ocorreu foi uma grave imperícia por parte do piloto”, atesta Sant’Anna. Ele aponta, assim como o relatório do BEA, que Bonin e Robert não seguiram o procedimento padrão para casos de perda de instrumentos. Por que isso aconteceu? Estresse e falta de treinamento No momento em que a aeronave está em modo alternado e sob forte turbulência, os pilotos na cabine se encontram em intenso estresse. Os equipamentos mostram dados conflitantes, diversos alarmes estão soando, inclusive o de “estol” (perda de sustentação), e a conversa de Robert e Bonin indica que eles não sabem em quais informações do painel eles devem acreditar. Tudo aponta para a suspeita de que Bonin acreditou que o avião thavia perdido altitude, por isso ele coloca os motores em potência máxima e ergue o nariz, para que ele volte à altitude de cruzeiro. Ao fazê-lo, porém, a aeronave sobe a tal ponto que o ar rarefeito é incapaz de sustentá-la do ar. Também não há ar o suficiente para que os motores produzam mais empuxo, e o ângulo elevado do nariz faz com que as asas não produzam sustentação suficiente. O avião entra em estol de fato e começa a cair. A recuperação de estol é um procedimento padrão na formação de pilotos. Em aviões grandes, porém, até 2009, os profissionais só eram treinados em simulador para essas condições eventualmente, e em situação de baixas altitudes, onde o problema seria mais grave, por haver menos tempo para uma reação. Bonin e Robert haviam passado pelo último treinamento de recuperação de estol em simulador anos antes, e nunca como pilotos de A330. Além disso, em baixas altitudes, faz sentido que essa manobra seja executada apontando o nariz da aeronave para cima. Já em voo de cruzeiro, a atitude deve ser a contrária, apontando o nariz para baixo para que ele recupere velocidade. Após o desastre do AF 447, o treinamento dos pilotos mudou radicalmente neste aspecto. Confusão na cabine Robert aperta diversas vezes o botão de interfone do sarcófago, pedindo a presença do comandante Dubois na cabine de comando. Apesar de estar a poucos metros, ele demora quase dois minutos para chegar. Em vários momentos, instruído por Robert, Bonin reduz o ângulo de ataque do nariz, mas volta a puxar o “sidestick” para trás, instintivamente. O avião também sofre desvios para o lado, que o piloto hipercorrige, fazendo movimentos exagerados. Como os dados recebidos pelo computador de bordo não são considerados sempre válidos, o alarme de estol soa e para alternadamente, mesmo que o Airbus continue caindo. Como as asas não estão fornecendo sustentação, a aeronave trepida de maneira diferente da provocada por uma turbulência. O som do ar passando pelo avião também é mais alto. Enquanto o avião perde altitude, os tubos de pitot descongelam e voltam a atuar, mas a tripulação já não sabe mais em quais dados do painel deve confiar. Além disso, o ângulo de ataque do nariz exercido por Bonin é tão extremo que o ar não passa pelo tubo da forma esperada. Como o equipamento não registra nenhum dado válido, o alarme de estol silencia. Bonin pode ter achado que controlou a situação. Quando ele diminui o ângulo de ataque, as sondas voltam a funcionar e o alarme de estol soa novamente. Com esses sinais contraditórios, Bonin provavelmente perde a referência na hora de tomar decisões. Os últimos minutos do voo são marcados pelo pânico na cabine. Dubois finalmente chega ao cockpit. Os três se comunicam por meio de frases incompletas e imprecisas. Robert exclama para si mesmo quatro vezes: “Sobe!”, ao que Bonin comenta: “Mas eu estou com o nariz pra cima ao máximo já faz tempo!”. Neste momento, porém, a altitude é tão baixa que dificilmente o AF 447 teria alguma salvação. Dubois se dá conta do erro de Bonin e grita: “Não, não, não, não suba! Não, não, não!” Ao perceber que Bonin está mantendo a inclinação incorreta do nariz, Robert pede para assumir o controle da aeronave, mas Bonin não chega a entregá-lo completamente. Bonin e Robert, cada um com seu “sidestick”, fornecem comandos díspares para a aeronave, que se cancelam mutuamente. Às 02h14min28 UTC, quatro minutos e meio após o desligamento do piloto automático, o Airbus A330 colide contra o Oceano Atlântico, a cerca de 200 km/h de velocidade vertical, com o nariz inclinado a 16,2º para cima e uma leve inclinação à esquerda. Peça do Airbus A330 da Air France que caiu no Atlântico em 2009 — Foto: Divulgação Foram três minutos e 30 segundos de queda em estol desde 38 mil pés de altitude (11.500 metros), durante as quais o avião jamais recuperou a sustentação. É provável que os passageiros não tenham percebido a descida como queda, mas como uma forte turbulência. Na maior parte do tempo, os motores estavam em modo de potência máxima. Impacto na aviação O desastre do AF 447 foi extremamente traumático na aviação comercial. O Airbus A330 até hoje é considerado um dos aviões mais seguros do mundo. No dia 1º de junho de 2009, o voo da Air France desapareceu subitamente do radar, em condições meteorológicas comuns, sem mandar nem uma única mensagem de emergência. A demora em encontrar as caixas-pretas – e, consequentemente, as respostas – também fomentou teorias e especulações. Em quatro episódios, a produção narra a investigação, o drama das famílias e as atitudes tomadas para que um acidente semelhante jamais se repita.

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