Como os EUA se apropriaram do Canal do Panamá e por que tiveram que devolvê-lo nos anos 1990

“Vamos tomá-lo de volta”, disse o presidente ao divulgar as primeiras ações de seu mandato. Trump se referiu ao papel dos EUA na construção do canal e sua entrega ao Panamá, em 31 de dezembro de 1999. Na ocasição, a bandeira dos Estados Unidos desceu e a do Panamá subiu e tremulou como único emblema da Zona do Canal pela primeira vez. Os panamenhos comemoraram com alegria. O fim do milênio se aproximava, e a cena marcava o fim de uma era que causou protestos, tensões e mortes. Era a resolução do acordo assinado em 1977 entre o então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, e o líder panamenho, o general Omar Torrijos Herrera. O Canal do Panamá é um ponto estratégico que permitiu abrir uma passagem entre os oceanos Pacífico e Atlântico. — Foto: Getty Images via BBC O pacto abriu caminho para devolver o controle do canal estratégico ao país centro-americano. “Foi impressionante ver a reação do povo do Panamá. Foi um momento muito delicado e realmente muito bonito na história moderna”, disse Alberto Aleman Zubieta, que foi administrador do canal durante vários anos, à reportagem. Hoje, a soberania da hidrovia interoceânica está mais uma vez no centro das notícias após as promessas de Trump. Destaques do primeiro discurso de Trump após a posse Em 7 de janeiro, Trump já havia tratado do assunto e deu sinais de que não vai desistir da ambição de obter o controle da Groelândia e do Canal do Panamá, classificando ambos como essenciais para a segurança nacional americana. Questionado por jornalistas se descartava o uso de força militar ou econômica para assumir o controle do território autônomo dinamarquês ou do canal, ele respondeu: “não, não posso garantir nada em relação a nenhum dos dois”. Em dezembro, o então presidente eleito fez alusão às taxas cobradas aos navios americanos. “Estamos sendo enganados no Canal do Panamá”, disse. O político republicano sugeriu que, se isso não mudar, “exigiremos que o Canal do Panamá seja devolvido na íntegra aos Estados Unidos, rapidamente e sem perguntas”. Não disse, no entanto, como pretende fazê-lo. Por sua vez, o presidente panamenho, José Raúl Mulino, respondeu contundentemente num comunicado publicado na rede social X: “Cada metro quadrado do Canal continuará pertencendo ao Panamá”. Mas, voltando ao passado, como os Estados Unidos se apropriaram da Zona do Canal e o Panamá conseguiu recuperá-la há 25 anos? A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, relembra os acontecimentos que levaram ambas as nações a um acordo sem precedentes sobre a rota interoceânica que reconfigurou os padrões do comércio regional e global. Uma guerra civil e uma oportunidade A necessidade de construir uma passagem que ligasse o Oceano Pacífico ao Oceano Atlântico era algo que preocupava os colonizadores europeus desde o século 16. Naquela época, o único acesso que tinham aos mares do sul era o Estreito de Magalhães, no sul do Chile, o que significava navegar enormes distâncias e enfrentar o perigoso clima do Cabo Horn. Foram avaliadas inúmeras ideias: um canal na Nicarágua, um em Tehuantepec (México), outro em Darién, na fronteira do Panamá com a Colômbia, e uma passagem pelo istmo panamenho, que na época era território colombiano. Mas nenhuma dessas ideias se concretizaria até o século 19. A primeira grande aposta ocorreu em 1880, quando a Colômbia concedeu a concessão para a construção do canal a Fernando de Lesseps, engenheiro francês que havia construído o Canal de Suez, no Egito. Mas as doenças dos trabalhadores, muitos deles africanos escravizados, a umidade do território e as chuvas constantes levaram o projeto à falência. É aí que o interesse dos Estados Unidos por essa rota marítima se junta à dificuldade do Estado colombiano em ter o controle do seu território. A Colômbia emergia de uma guerra civil que havia deixado milhares de mortos e enfrentava elevados níveis de tensão política, o que acabaria por abrir caminho à independência do Panamá. Naquela época, os Estados Unidos eram uma potência emergente que mantinha o controle de Porto Rico e Cuba – e souberam ler a crise interna colombiana como uma grande oportunidade: propuseram pagar 40 milhões de dólares para ter a concessão para a construção do canal. Esse acordo materializou-se com o tratado Herrán-Hay entre a Colômbia e os Estados Unidos, que estabeleceu as diretrizes da licitação e foi acordado entre o secretário de Estado norte-americano, John Hay, e o ministro colombiano Tomás Herrán. Foi uma negociação complexa na qual cogitaram construir o canal na Nicarágua, mas também tinham que levar em consideração que os franceses já haviam feito um investimento inicial no Panamá. Por fim, ficou decidido que o canal seria construído no Panamá com capital dos Estados Unidos, que, por sua vez, pagariam à Colômbia e à empresa francesa. Mas, no dia 5 de agosto de 1903, o governo colombiano, depois que o Congresso se opôs a vários pontos do acordo, alegando que o texto violava a soberania do país, informou que o rejeitava. Esta última decisão da Colômbia levou à separação do Panamá. “Quando a Colômbia rejeita o tratado Herrán-Hay, e havia boas razões para rejeitá-lo, vários fatores se combinam a favor da independência do Panamá da Colômbia”, disse a historiadora panamenha Marixa Lasso à BBC Mundo. Finalmente, os Estados Unidos encontraram neste descontentamento panamenho “uma excelente oportunidade para obter o tratado que desejavam sem a interferência da Colômbia”. E foi então que o Panamá ignorou a rejeição do tratado e, em aliança com os Estados Unidos — que disseram que iriam intervir se houvesse retaliação militar da Colômbia — declarou sua independência no dia 3 de novembro de 1903. Um país dividido e o início das tensões Após a independência do Panamá, ambas as nações assinaram o tratado Hay-Bunau Varilla durante a presidência de Theodore Roosevelt, nos Estados Unidos. Nesse pacto, os Estados Unidos garantiam que manteriam a independência do Panamá desde que o país concedesse a concessão perpétua do canal, além do domínio da chamada Zona do Canal, que incluía 8 km de cada lado da via estratégica. O Panamá receberia US$ 10 milhões como compensação. Concluída a obra, em 1913, o barco a vapor Ancón tornou-se a primeira embarcação do tipo a cruzar as suas águas, constituindo-se como um símbolo da sua abertura ao mundo. Mas as tensões não demorariam a aparecer. Na prática, o país estava fisicamente dividido em dois. Milhares de americanos e suas famílias viviam na área sob suas próprias leis e costumes enquanto trabalhavam no canal, que foi formalmente inaugurado em 1914. Os “zoneítas” (de zonians, em inglês) viviam praticamente isolados e sem contato com a população panamenha, que não podia acessar aquele território sem autorização especial. O ressentimento dos panamenhos contra os privilégios dos zoneítas aumentou ao longo dos anos, até que décadas mais tarde começaram os protestos para recuperar o controle do seu território. E há dois marcos que seus protagonistas lembram como fundamentais. Uma delas é a “Operação Soberania” de 1958, na qual um grupo de estudantes universitários surpreendeu a polícia da Zona do Canal ao entrar para “plantar” pacificamente 75 bandeiras panamenhas. “Isso marcou o novo rumo das negociações do canal, porque a partir daquele momento derrotamos a agressão psicológica que os EUA realizavam no Panamá desde 1903”, disse Ricardo Ríos Torres, um dos líderes dessa manifestação, à BBC Mundo em 2019. “Disseram-nos que este não era um território de acesso para os panamenhos. Naquele dia, dissemos que não tínhamos mais medo e que queríamos um novo tratado que acabasse com a perpetuidade da presença colonial.” O outro acontecimento que influenciou o caminho para a recuperação da hidrovia interoceânica foi a Marcha Patriótica de 1959, na qual o povo panamenho foi convidado a entrar na Zona do Canal portando sua bandeira. Esta marcha também começou de forma pacífica, mas, quando o governador da Zona do Canal proibiu a entrada de manifestantes, ocorreram confrontos entre panamenhos e policiais – dezenas de pessoas ficaram feridas. Ambas as mobilizações foram a origem de uma frase que mais tarde se tornaria popular no Panamá: “Quem semeia bandeiras colhe soberania”. Dia dos Mártires Esses acontecimentos históricos desencadearam mais mobilizações nos anos seguintes. A população panamenha não estava disposta a recuar nas suas exigências e era cada vez mais evidente que o governo dos EUA não podia fazer ouvidos de mercador aos protestos. Assim, as negociações lentas culminaram num acordo em 1962 entre o presidente panamenho Roberto Chiari e o americano John F. Kennedy, graças ao qual se estabeleceu que as bandeiras de ambos os países deveriam hastear nas áreas civis da Zona do Canal. Mas quando chegou o dia 1º de janeiro de 1964, data em que o acordo entraria em vigor, os zoneítas ignoraram as ordens do próprio governador da Zona do Canal e recusaram-se a hastear a bandeira do Panamá. As autoridades da região nada fizeram a respeito, e a notícia irritou os panamenhos. No dia 9 de janeiro daquele ano, dezenas de estudantes do Instituto Nacional do Panamá dirigiram-se à Zona do Canal carregando a bandeira de sua escola para que também pudesse ser hasteada no Colégio Balboa, instituição mantida pelos americanos. Mas alguns policiais americanos os impediram, e o confronto terminou na violação da bandeira panamenha. A atmosfera de tensão era total. O dia terminou com mais de 20 manifestantes mortos e centenas de feridos no que é conhecido como “Dia dos Mártires”. Esse fato, concordam todos os analistas, foi o grande gatilho para que o Canal do Panamá acabasse por ser transferido para mãos panamenhas mais de 35 anos depois. A dureza da resposta do Exército americano às mobilizações levou o então presidente do Panamá, Roberto Chiari, a anunciar que o país estava interrompendo as relações diplomáticas com Washington até que um novo tratado fosse assinado entre os dois países. Esta decisão – sem precedentes para um país onde os EUA estavam presentes – é o que fez com que, ainda hoje, muitos se refiram a Chiari no Panamá como “o presidente da dignidade”. A pressão internacional foi decisiva para que os Estados Unidos concordassem em negociar. O acordo Torrijos-Carter Após aquele janeiro sombrio, em 3 de abril de 1964 começaram as conversas entre os Estados Unidos e o Panamá. Ambos países se comprometeram a nomear embaixadores especiais para conduzir um diálogo tenso. “Não havia volta atrás. O Panamá só aceitaria um novo tratado. O presidente Carter compreendeu isso, e foi assim que os Estados Unidos acabaram assinando o acordo. A população panamenha estava convencida de que era necessário eliminar aquele enclave colonial e reivindicar o que era nosso”, disse o líder manifestante Ríos Torres à BBC Mundo em 2019. “Ou entregavam o canal, ou simplesmente desapareciam.” No entanto, foi necessário esperar 10 anos até que, sob o governo de Richard Nixon, fosse assinada, na Cidade do Panamá, uma declaração conjunta entre o secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, e o chanceler panamenho, Juan Antonio Tack. Naquele momento, já estava claro para ambas as partes que, antes de tudo, era preciso revogar o Tratado Hay-Bunau-Varilla, que havia concedido os direitos do canal aos Estados Unidos, além de encerrar sua jurisdição no país centro-americano. E essa seria a base para o acordo que, três anos depois, seria assinado por Jimmy Carter e Omar Torrijos. O tratado, firmado na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA) em Washington, no dia 7 de setembro de 1977, contemplava a celebração de dois pactos: o Tratado de Neutralidade e o Tratado do Canal do Panamá. Em termos simples, neles ficou acordado que a soberania da Zona do Canal estaria sujeita à legislação panamenha e se estabeleceu uma data para a transferência do domínio da via interoceânica ao país centro-americano: 31 de dezembro de 1999. Para Carter, com a devolução do canal aos panamenhos, os americanos demonstraram que “como um país grande e poderoso, somos capazes de tratar de forma justa e honrosa com uma nação soberana, orgulhosa, mas menor”. Em sua opinião, esse marco selava “um novo sentimento de confiança mútua e respeito pelos Estados Unidos” entre os países latino-americanos, conforme informou, na época, o jornal The New York Times. Suas palavras, após a assinatura dos tratados Torrijos-Carter, também buscavam acalmar as águas internas. Nos Estados Unidos, principalmente entre os setores conservadores, havia uma forte resistência em ceder a jurisdição que o país exercera por quase um século. “Não somos proprietários da Zona do Canal do Panamá, nunca tivemos soberania sobre ela. Só tivemos o direito de utilizá-la”, disse Carter. Suas palavras encontraram eco no Senado americano, que, posteriormente, ratificaria o pacto e selaria os destinos do canal. O mesmo fizeram os panamenhos. Torrijos submeteu os tratados a plebiscito e obteve amplo apoio. A devolução Após um período de transição, a poucos dias da virada do século, autoridades de todo o mundo chegaram ao Panamá para participar da cerimônia oficial do que já se tornara um sonho histórico para seus habitantes. No dia 14 de dezembro, realizou-se um primeiro evento, em Miraflores, uma das comportas do canal. A cerimônia, que reuniu cerca de 1,5 mil convidados, contou com a presença de mandatários e delegações de países como Colômbia, Equador, Costa Rica, México e Bolívia. A eles também se juntaram o rei Juan Carlos I da Espanha e o próprio Jimmy Carter. O porte da delegação americana — presidida pelo secretário de Comércio e Transporte, William Daley — e a ausência do presidente em exercício, Bill Clinton, no entanto, não passaram despercebidos pelo governo panamenho, liderado na época pela presidente Mireya Moscoso. A líder inclusive transmitiu seu desconforto aos enviados especiais dos jornais mais importantes do mundo que foram cobrir o momento histórico. Mas nada disso ofuscou o que seria vivido após o meio-dia do dia 31 de dezembro. Com telões em vários pontos da cidade e um relógio em contagem regressiva, os panamenhos acompanharam ao vivo a devolução definitiva da via interoceânica. Foi Mireya Moscoso quem hasteou a bandeira panamenha naquele dia no Edifício da Administração do Canal, selando assim a transferência, que ratificou junto ao secretário do Exército dos Estados Unidos, Louis Caldera. “Panamá, o canal é dos panamenhos”, disse a presidente naquele dia, conforme reportado pela agência Associated Press. “O Panamá finalmente alcança a plenitude de um Estado soberano”. Cantou-se o hino nacional, houve celebração e até fogos de artifício. “Neste dia, atingimos a maioridade como nação”, afirmou Moscoso em seu discurso, destacando que, a partir daquele momento, os panamenhos assumiam uma nova tarefa: gerenciar “de maneira eficiente, como uma questão de Estado e livre de interesses políticos” o Canal do Panamá.

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