André Bernardo – Do Rio de Janeiro para a BBC Brasil
Para Chico Buarque, não existe amistoso. Qualquer jogo, de campo ou de quadra, no Brasil ou no exterior, é sempre final de campeonato.
Em março de 1972, ele e Chico Anysio (1931-2012) se encontraram para uma partida de futebol de mesa, o popular “jogo de botão”.
De um lado, o Club de Regatas Vasco da Gama, o Gigante da Colina, o clube de coração do humorista cearense. Do outro, o Politheama, o Colosso da Barra, o time de botão do músico carioca.
A cada gol marcado, Chico Buarque cantarolava, eufórico, o hino que ele próprio compôs: “Politheama, Politheama / O povo clama por você / Politheama, Politheama / Cultiva a fama de não perder…”. Novo gol, mais cantoria.
Lá pelas tantas, até Vinicius de Moraes, o juiz da partida, estava assobiando a melodia. Foi quando Chico Anysio perdeu a esportiva e esbravejou: “Pô, seu juiz, assobiando o hino do adversário?”, recorda Chico, aos risos, no DVD “O Futebol” (2006), de Roberto de Oliveira.
Em 1978, quando trocou de gravadora e assinou com a Ariola, Chico Buarque comprou um terreno no Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste do Rio.
Lá, mandou construir o Centro Recreativo Vinicius de Moraes, no km 18 da Avenida Lúcio Costa, antiga Sernambetiba. E, em seguida, promoveu o Politheama a time de futebol de verdade.
Atualmente, há jogos toda segunda, quinta e sábado, sempre às 13h. O cantor Hyldon, um dos mais assíduos, já pediu a Chico para mudar de horário.
“É muito quente”, queixa-se. O cartola reluta. Argumenta que, pelas estatísticas, ninguém nunca morreu neste horário. Brincadeiras à parte, o autor de “Na Rua, na Chuva, na Fazenda” (1975) reforça a fama de invencível do time: “Nunca perdeu jogos oficiais”.
Uma das partidas mais disputadas, conta, foi contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Trouxeram até torcida”, espanta-se Hyldon. “Resistimos bravamente, mas, no finalzinho, eles conseguiram o empate. Placar final: 7 a 7”.
Em 45 anos de existência, o Politheama já recebeu incontáveis jogadores – de pernas de pau a craques de bola. Poucos atletas têm a coragem de assumir publicamente que não jogam lá essas coisas. Francis Hime, parceiro de Chico em 19 canções, é um deles.
“Como era perna de pau, jogava no time reserva”, admite.
Seu dia de glória, lembra, foi quando deu um lençol (ou chapéu) no Magro (1943-2012), um dos fundadores do MPB4, ao lado de Miltinho, Aquiles e Ruy Faria (1937-2018).
“Só não fiz o gol porque chutei por cima do travessão”, lamenta o coautor de “Atrás da Porta” (1972), “Meu Caro Amigo“ (1976) e “Vai Passar” (1984).
Sombrinha, por outro lado, garante ter feito, em 2005, o gol mais bonito já marcado no Politheama.
E, para provar o que diz, exibe, orgulhoso, um “diploma”. O gol foi tão bonito, sublinha, que foi batizado de “o gol dos três balões”.
“Dei três chapéus, inclusive no goleiro, sem deixar a bola cair”, detalha, cheio de si, um dos fundadores do Fundo de Quintal. “Foi um gol de placa.”
Entre os profissionais, duas visitas merecem destaque: a de Paulo César Araújo, o Pagão (1934-1991), em 1984, e a de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé (1940-2022), em 2005.
Chico gosta tanto do centroavante do Santos e do São Paulo que, nas peladas do Politheama, usa sempre a camisa 9 em homenagem ao ídolo e, na súmula dos jogos, houve um tempo em que só assinava Pagão.
“Ele era demais. Jogador de uma leveza admirável”, elogia no documentário sobre futebol.
Quando visitou o Politheama, Pelé trocou autógrafos com Chico e, em dueto, arriscaram os versos de “Preconceito” (1941), samba de Wilson Batista e Marino Pinto.
A certa altura, o visitante perguntou: “Você fez quantos gols aqui, Chico?”. Gaiato, o anfitrião respondeu: “Perdi as contas. Até mil, eu contei…”. E os dois caíram na gargalhada.
Dois anos depois da visita de Pelé, Chico gravou o documentário “Edu Lobo – Vento Bravo” (2007), de Regina Zappa e Beatriz Thielmann.
Em determinado momento, Chico é indagado: “Dizem que você e Edu são o Pelé e Coutinho da MPB. Como se dá essa parceria?”. Nessa, toca a bola para o parceiro: “Diz aí, Coutinho!”.
Juntos, Chico e Edu compuseram 42 músicas, como “Beatriz” (1982) e “Ciranda da Bailarina” (1982).
Outra visita ilustre foi a do cantor jamaicano Bob Marley (1945-1981) na tarde do dia 19 de março de 1980. Quem estava lá para contar a história foi Evandro Mesquita, fundador e vocalista da banda Blitz. O convite, lembra o roqueiro, partiu do jogador Paulo Cézar Caju, tricampeão com o Brasil na Copa de 1970, no México.
BOB MARLEY EM CAMPO
“Estava na praia, acertando os últimos detalhes de uma peça do Asdrúbal Trouxe o Trombone, com a Regina Casé e a Patricya Travassos, quando recebi o convite. Quase desmaiei. Nem pensei duas vezes. Fui!”, recorda.
Bob Marley, por sua vez, foi convidado a vir ao Brasil pelo diretor geral da Ariola, Ramón Segura, para participar da festa de lançamento da gravadora alemã no país. O jogo, aliás, terminou 3 a 0 —gols de Marley, Caju e Chico.
O mais engraçado, lembra Evandro, eram os nomes dos times: Pipa Voada, Trem da Alegria, Vento Forte… Neste quesito, o campeão dos campeões é o time do cantor Paulinho da Viola: Menopausa Futebol Clube.
“O que eu posso dizer sobre o Chico? O cara é craque em qualquer campo. Jogar pelada com ele é sempre uma honra. Não bastasse, o Chico ainda é tricolor, como eu”, Evandro estufa o peito, orgulhoso.
Chico Buarque herdou a paixão pelo Fluminense Football Club da mãe, Maria Amélia (1910-2010). O pai, o sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982), nunca ligou muito para futebol. Para evitar polêmicas, dizia torcer para o Bonsucesso Futebol Clube.
Quando criança, já morando em São Paulo, o pequeno Chico jogava bola na rua. O clássico dos Jardins, bairro onde morava, era Taiarana e Sarandi.
Mas, a partida tinha que ser interrompida toda vez que os garotos avistavam um carro subindo a rua. “Olha a morte!”, gritavam.
Quando completou 16 anos, chegou a se candidatar a uma vaga no Clube Atlético Juventus. Tinha certeza de que, se fizesse teste para clube “pequeno”, suas chances seriam maiores. Não foram. “Perdeu-se um craque”, deu de ombros, em 1968, em entrevista à revista Cláudia.
Já adulto, durante o autoexílio em Roma, entre janeiro de 1969 e março de 1970, chegou a jogar ao lado de Garrincha (1933-1983).
Certa ocasião, Chico e “o anjo das pernas tortas” marcaram vinte gols, dez cada um, só no primeiro tempo de um jogo contra um clube de várzea da Itália.
“Quase um gol a cada dois minutos”, faz as contas o jornalista Tom Cardoso.
O futebol, aliás, mereceu um capítulo inteiro em seu recém-lançado livro “Trocando em Miúdos – Seis Vezes Chico” (Record, 2024).
Certa vez, durante um passeio de táxi por Marrocos, Chico chegou a dizer que era jogador de futebol. “Ex-jogador, né?”, corrigiu o taxista. Sim, ex-jogador que, inclusive, disputou a Copa do Mundo de 1982, na Espanha.
Para azar do cantor, o motorista sabia de cor e salteado o nome de todos os jogadores da seleção de Telê Santana (1931-2006): do goleiro Waldir Peres (1951-2017) ao ponta-esquerda Éder.
“Fiquei no banco porque estava machucado. Era reserva do Sócrates”, respondeu Chico, com a cara mais lavada.
Em outra ocasião, no Charles de Gaulle, em Paris, foi abordado por uma multidão.
Curioso, um funcionário do aeroporto quis saber se ele era alguma celebridade.
“Sou um famoso jogador de futebol”, respondeu. “Mas, e aquela caixa de violão ali na esteira?”, rebateu o rapaz. “É o disfarce para as minhas chuteiras”, finalizou o cantor.
Fanático por futebol, Chico Buarque não perde uma chance para jogar. Nem quando está em turnê. “Onde tem show, tem jogo”, explica a jornalista Regina Zappa no livro “Para Todos” (Relume Dumará, 2000).
Certa vez, ele convocou o percussionista de sua banda, Chico Batera, e seu produtor executivo, Ricardo Clementino, o Tenente, para bater bola, às três da madrugada, em um dos corredores do Hotel Kubitschek, em Brasília. Enquanto um chutava, o outro defendia. E vice-versa.
“Sem futebol não tem música”, arremata a autora de “Para Seguir Minha Jornada” (Nova Fronteira, 2011).
PRELIMINAR DO PSG
E isso vale também para as turnês internacionais. Chico Buarque já deu o ar de sua graça em gramados de diversas capitais da Europa: de Londres a Budapeste. Na capital da França, o Politheama foi convidado para fazer a preliminar entre o Paris Saint-Germain e o Lens contra um time de músicos locais.
Só que, na véspera, uma TV francesa convidou o capitão da equipe para se apresentar lá no dia seguinte. Com medo de perder o jogo, Chico declinou do convite.
Chico e o time inteiro, diga-se de passagem. Sobrou para Vinicius Cantuária.
“Quando o Chico disse ‘Os caras querem você!’, fiquei todo prosa. ‘Puxa vida, sou f… mesmo!’, pensei. Bem, essa foi a história que o Chico me contou e eu acreditei”, recorda o cantor, aos risos.
No dia seguinte, o autor de “Lua e Estrela” (1981) e “Só Você” (1984) tentou conciliar os dois compromissos: a gravação do programa, pela manhã, em Paris e a realização do jogo, à tarde, em Lens, a quase 200 quilômetros de distância.
“Conclusão: fiz o programa e foi incrível. Naquele dia, conheci o Charles Aznavour (1924-2018). E o melhor: cheguei a tempo de jogar. A partida terminou 1 a 1 e eu ainda marquei o gol do Politheama!”, orgulha-se.
Mas não é sempre que a história tem final feliz. Que o diga o violonista Luiz Claudio Ramos, que toca com Chico desde 1973.
“Pulei para cabecear e, quando apoiei a mão no chão, sofri fissura no pulso. Isso, no terceiro dia da turnê Paratodos. Fiquei 15 dias engessado”, queixa-se.
São muitas as histórias engraçadas contadas pelos boleiros do Politheama. Quando não está jogando bem, entrega Miltinho, do MPB4, Chico Buarque diz que quem está ali é seu irmão, o botafoguense Álvaro.
Nessas horas, pede para sair, dá uma volta atrás da árvore e volta para o campo. “E aí, pessoal, tudo bem?”, cumprimenta, como se tivesse acabado de chegar.
Houve um dia em que, por falta de jogador, quase não teve pelada. O que Chico fez? Saiu à procura de craques pelas redondezas.
Dali a pouco, apareceu com dois garotos: um de oito e outro de dez anos. Diante do espanto dos veteranos, sentenciou: “A idade mínima para jogar no Politheama é de seis meses”.
Isso sem falar nos apelidos. O de Chico, por exemplo, é Chicória. Já o de Hyldon é Dimas, em alusão ao bom ladrão do Novo Testamento. O cantor, dizem, é um exímio “ladrão de bolas”. Daí, o apelido bíblico. “Quase todo artista é um jogador de futebol frustrado”, filosofa o cantor. “E vice-versa.”
‘NÃO JOGA NADA’
Mas Chico Buarque não gosta apenas de jogar futebol. Também gosta de escrever crônicas (teve coluna nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo na Copa da França, em 1998), compor músicas (a mais famosa delas é, sem dúvida, “O Futebol”, de 1989) e criar jogo de tabuleiro (o Ludopédio foi lançado em 1969 pela Grow e relançado, sob o nome de Escrete, em 1974).
A única coisa de que ele não gosta é teorizar sobre futebol. “Sou passarinho, não ornitólogo”, costuma dizer, citando o escritor chileno Antonio Skármeta.
“O Chico é um jogador muito inteligente”, elogia o cantor e compositor Guinga, que frequenta o campo do Politheama desde 1990.
“Vê coisas em campo que nenhum outro jogador vê. É capaz de enfiar a bola para o centroavante como nenhum outro. Acho que ele faria bem qualquer coisa na vida.”
O cantor Luiz Melodia (1951-2017), craque do Estácio Holly Futebol Clube, pensava diferente: “O Chico não joga nada, nunca jogou. Tem essa fama de habilidoso só porque é dono do time”, declarou ao Valor Econômico, em 2014.
O maior adversário que o Politheama já teve, porém, foi o Namorados da Noite, fundado por outro craque da música, Toquinho. É o Fla-Flu da MPB. As duas equipes, inclusive, já disputaram preliminar no Pacaembu, em 1983. Placar final: 5 a 1, para o Namorados.
“O time do Chico vem correndo atrás, tentando ser melhor que os Namorados da Noite, e jamais conseguindo, nem no campo, muito menos no uniforme, e menos ainda no hino, diante da joia musical que compus para louvar meu invencível time”, gabou-se Toquinho em “Acorde Solto no Ar” (Imprensa Oficial, 2011).
Chico não deixou barato. Ao ser indagado por um jornalista da revista francesa Brazuca sobre quem é o melhor dos dois dentro das quatro linhas, respondeu: “É o tipo de pergunta que minha modéstia não me permite responder. Ele já não joga há algum tempo, já não jogava grande coisa. A última vez que eu ia encontrar com ele para jogar, não apareceu. Acho que já pendurou a chuteira”.
Coisas do futebol.
*Este texto foi publicado originalmente aqui.