Em Araraquara (SP), é celebrado nesta sexta-feira (26) o “Dia Municipal do Ofício das Rezadeiras e Benzedeiras”, e o g1 mostra as histórias de duas mulheres que se dedicam a curar o próximo com rezas ancestrais poderosas, passadas de geração em geração. Benzadeira ou rezadeira? Embora o intuito seja o mesmo, enquanto a benzedeira utiliza água, óleo, ervas medicinais nas preces, a rezadeira trabalha com a palavra e objetos como a cruz e o terço. Duas das últimas representantes de uma tradição centenária, Fátima da Paixão Bonavina, de 71 anos, e Angelina Gomes de Lucena , a dona Tina, 66 anos, têm o dom de “tirar com as mãos” e muita súplica os males e doenças das pessoas que as procuram. “Enquanto você não precisa benzer, você não acredita. A fé cura. Eu me sinto muito bem em ajudar os outros, tem que benzer pra curar, não é só o médico que trata”, disse dona Fátima. Tradição familiar de fé Fátima tem a oração e o benzimento em seu DNA. A avó Antônia, a mãe Madalena e o pai Antenor já eram benzedores e com ela não foi diferente. Nascida e criada no bairro dos Machados, área rural de Araraquara, Fátima sempre conviveu com preces e religiosidade ao seu redor. Aos anos 6 anos ela já sabia a oração para cobreiro, que são bolhas e coceiras que aparecem na pele. “Eu era criança e não queria aprender, mas minha mãe dizia para a gente escrever as orações e não deixa acabar. Nunca mais esqueci”, comentou. Fátima benze o pequeno Levi que estava com o “bucho virado”. — Foto: Amanda Rocha/g1 Cada um de sua família fazia um tipo de benzimento e Fátima aprendeu todos que pode e hoje benze de tudo, assim como acontecia com sua avó. “Cada situação é uma reza. Minha mãe benzia assustado e quebranto. Meu pai Antenor benzia só de impingem (micose), dois meses antes dele morrer, ele me ensinou a oração. Foi minha irmã que marcou no papel, eu tenho guardado até hoje”, contou. Vocabulário e orações O tercinho, a água, o óleo e a planta medicinal gervão são instrumentos poderosos na mão da benzedeira. De segunda a sexta-feira, ela trata de inúmeras queixas e em especial de crianças com o “bucho virado”, que é uma indisposição estomacal. Raminhos de ervas são instrumentos preciosos na mãos de benzedeiras. — Foto: Amanda Rocha/g1 Outro problema constante que aparece são crianças “assustadas”, que levaram algum susto, choram muito e não conseguem dormir à noite. “Atendo mais crianças, é o maior público. Uso o tercinho e o gervão para casos de assustado. Em adultos, a gente não fala assustado, e sim trauma”, contou. Cura pela fé A aposentada Dulcineia Jerônimo Rosa, 58 anos, levou pela terceira vez o netinho Levi Emanual dos Santos, de 11 meses, para atendimento. O bebê Levi passou por benzimento com dona Fátima pela terceira vez. — Foto: Amanda Rocha/g1 “O Levi está com bucho virado, já levei ao médico também, porque estava chorando muito, e ele disse que estava com estomatite. Eu trouxe de novo, está medicado também. Faz muito bem e ele já melhorou muito depois que vim aqui”, disse. Mãe de duas crianças, a doceira Valeria Francisca, de 45 anos, costuma dizer que primeiro leva os filhos para benzer e depois vai ao médico. “É ótimo vir aqui com eles, é imediato, na hora melhoram. Quantas vezes eu vim aqui com meu filho ruim, de bucho virado, com febre e vômito, é só benzer que sara”, disse. A doceira se benze com Fátima há 8 anos e leva os filhos para benzimento antes de ir ao médico. — Foto: Amanda Rocha/g1 Dom ancestral Angelina Gomes de Lucena , a dona Tina, tem 66 anos e uma vida inteira como rezadeira. Descendente de indígenas, a mineira de Padre Paraíso (MG), se mudou jovem para Araraquara, após a morte da mãe. De lá para cá são 45 anos dedicados ao ritual de cura. “Eu nasci assim, dos meus 8 irmãos, eu fiquei com o dom. Não tem para onde correr, Deus dá e pronto. Eu sem Ele não sou nada. Meus pais já eram benzedores, assim como todos meus descendentes eram indígenas rezadores. A palavra exata é intercessora porque intercedo por aquelas pessoas e problemas”, contou. Dona Tina em atendimento: fé inabalável e amor ao ofício da oração — Foto: Amanda Rocha/g1 Dona Tina é católica e entoa orações fortes e antigas que segundo ela datam de 400 anos atrás. Religiosamente ela faz as suas súplicas, sendo que uma delas, a do Santo Sepulcro, deve ser realizada por 15 anos todos os dias. “As orações que faço são bem antigas, de 300, 400 anos atrás, tanto que só gente mais velha pra conhecer algumas. Elas são dos Apóstolos, vem dos antepassados que foram passando um para o outro” disse. A rezadeira Tina dedica a sua vida a orações que foram passadas por seus antepassados em Minas Gerais. Há 45 anos ela realiza rituais de cura em Araraquara. — Foto: Amanda Rocha/g1 Por meio da oralidade de seus familiares e dom inato, as palavras benditas ficaram guardadas em sua memória. Tina comentou que muita gente tenta encontrar as preces na Internet, sem sucesso. “Tem uma muito forte e antiquíssima, é o Sonho de Nossa Senhora, tem pessoas que procuram na Internet, mas não acham porque não existe lá”, disse. Devoção Dona Tinha fala com fervor de sua devoção a todos os santos e liturgias. Ela faz desde atendimentos considerados leves em crianças, até casos mais graves, como doenças. O seu público é diverso e de várias camadas sociais. “Sou devota dos santos médicos. Se o é um caso de cura, eu tenho que interceder a São Lucas, São Rafael, depende do caso. Eu atendo muito médico, crianças, é bem diverso. Tem médicas que mandam pacientes até mim, ligam marcam hora e são curados”, comentou. Altar com santos “exorcizados” é mantido na casa de Dona Tina. — Foto: Amanda Rocha/g1 O boca a boca sobre o poder de suas rezas vai longe, trazendo até sua casa gente da capital e das cidades vizinhas. A rezadeira atende com hora marcada e nunca cobra por nada. “Se tem alguém rico, esse alguém sou eu. Eu não tenho nada, mas eu tenho tudo porque tenho Deus. E me sinto feliz por orar pelas pessoas. Tudo o que eu ganho eu doo para quem precisa”, disse. Tempo para espiritualidade Tina sente que atualmente as pessoas vivem mais no trivial do cotidiano e se esquecem da espiritualidade. Para ela, muitos entenderam errado a mensagem bíblica sobre o dízimo. “As pessoas estão tão focadas no mundo e não têm tempo para espiritualidade, e nós temos que ter esse tempo. A Bíblia fala que 10% do que ganhamos é para o dízimo, mas é do seu tempo, se você pegar as 24h do dia, dá 2h30 que é de Deus, não é para o mundo. Esse momento é a parte mais gostosa do meu dia, eu desligo quando oro ” disse. A rezadeira Tina é uma mulher de fé inabalável: ” Eu não tenho nada, mas eu tenho tudo porque tenho Deus. Me sinto feliz por orar pelas pessoas” — Foto: Amanda Rocha/g1 Futuro do ofício A benzedeira Fátima se preocupa com o futuro de seu ofício, pois percebe que muitas pessoas perderam o clamor da fé. Embora tenha receio da tradição familiar acabar com ela, guarda esperanças. “Eu pretendo benzer até quando eu estiver aqui, hoje quase ninguém quer saber de aprender. Mas eu tenho uma neta de 16 anos que se mostrou interessada. Já passei umas orações para ela e espero que siga”, contou. Já a rezadeira Tina ainda aguarda a chegada de alguém para o ritual não se encerrar com ela. Mãe de três filhos e com alguns netos, ela sabe que eles não possuem a vocação. “Da minha família até agora não achei ninguém que vai herdar o dom. Pode ser que nasça ainda alguém, porque esse dom está acabando”, conclui. Cruz “poderosa” de Tina é usada em todos os benzimentos de adultos. — Foto: Amanda Rocha/g1
Benzedeiras lutam para manter tradição centenária do uso de ritos e orações contra males do corpo e da alma: ‘a fé cura’
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