BBC News Brasil A série “Bebê Rena”, da Netflix, é um mega sucesso por conta do drama envolvendo a perseguição de um homem por uma mulher. Agora, porém, com os espectadores tentando identificar as inspirações da vida real, criou-se uma tempestade que não está prestes a diminuir. Uma das supostas envolvidas no caso está ameaçando processar a plataforma de streaming e o criador da produção artística. No dia 9 de maio, a escocesa Fiona Harvey, de 58 anos, foi entrevistada por Piers Morgan em seu programa de entrevistas na internet chamado Piers Morgan Uncensored. Durante a entrevista no YouTube —na qual ela foi ridicularizada aos milhares por espectadores comentando ao vivo— Harvey afirmou ter sido retratada como a vilã da série contra sua vontade: “Isso já tomou conta da minha vida. Acho isso horrível, misógino. Algumas das ameaças de morte foram realmente terríveis”, contou. Fiona Harvey é a mulher que os detetives da internet afirmam ser a personagem Martha Scott da vida real. A personagem é inspirada em uma mulher que o escritor e estrela da série aclamada pela crítica, Richard Gadd, disse ter assumido o controle de sua vida real na década de 2010 com uma campanha de perseguição. Durante o período de três anos, ela supostamente enviou a Gadd mais de 41 mil emails e 350 horas de mensagens de voz para seu celular, além de aparecer em seu local de trabalho, assistir a seus shows de comédia e assediar seus pais. A série é uma adaptação ficcional de eventos da vida de Gadd. O personagem se chama Donny Dunn, e o programa tem sido um enorme e também surpreendente sucesso global para a Netflix. Números recentes de audiência afirmam que ele teve 60 milhões de visualizações em todo o mundo em apenas um mês. O próprio Gadd disse que não esperava alcançar um público tão grande, já que o roteiro foi adaptado de um pequeno show de teatro individual, apresentado no Festival de Edimburgo em 2019. Ao jornal escocês Daily Record na semana passada, Gadd afirmou ter “sempre acreditado no programa. “Realmente adorei e pensei que seria uma pequena joia artística e cult na plataforma Netflix, talvez. Mas, da noite para o dia, foi uma loucura. Parecia que um dia eu acordei e todo mundo estava assistindo”. No entanto, o resultado de milhões de pessoas assistirem ao programa -muitas, presumivelmente, com celulares nas mãos- foi que os telespectadores começaram a ficar curiosos sobre a história real por trás do programa ficcional. Quem é a perseguidora de verdade? E o executivo de TV que é retratado agredindo sexualmente Donny? Onde eles estavam agora e alguma vez enfrentaram a Justiça? Com uma pequena pesquisa na internet, os espectadores começaram a vincular algumas das frases e falas usadas por Martha a Harvey, que supostamente tuitou as mesmas coisas para Gadd em uma linha do tempo semelhante (como “Minhas cortinas precisam muito ser penduradas”). Os detetives de poltrona, geralmente mais envolvidos em documentários ou podcasts da vida real, entraram em ação. Apesar de Gadd afirmar: “Fizemos tanto esforço para disfarçá-la [a perseguidora] a tal ponto que não acho que ela se reconheceria”, o nome de Harvey estava em toda a internet. Harvey, como Martha, é uma mulher escocesa mais velha que se parece com o personagem de Gunning; era advogada e também já foi acusada de assediar outro casal, o falecido membro do parlamento Jimmy Wray e sua esposa, advogada, Laura. Como Harvey confirmou no programa de Morgan, ela também frequentava o bar onde Gadd havia trabalhado, The Hawley Arms, e o visitou em um de seus shows de comédia. Apesar dos apelos de Gadd no Instagram (“Por favor, não especule sobre quem poderiam ser as pessoas da vida real. Esse não é o objetivo do nosso programa”), Harvey foi “descoberta” e, após renunciar ao anonimato, deu entrevistas ao Daily Record e ao Daily Mail, antes de aparecer no programa de entrevistas de Piers Morgan -gerando muitos protestos públicos sobre a ética e questionamentos se uma pessoa vulnerável estava sendo explorada. Ao longo da conversa de quase uma hora, assistida por mais de meio milhão de pessoas em determinado momento, ela admitiu ter enviado “cerca de 18” tuítes para Gadd e de ter participado de “brincadeiras” com ele no Hawley Arms, mas negou ser uma perseguidora ou ter enviado milhares de emails para o artista. Apesar de se contradizer diversas vezes, por causa das ameaças de morte e dos abusos que diz ter enfrentado desde que foi identificada, Harvey disse na entrevista que agora planeja processar a Netflix e Gadd. Como Morgan apontou na entrevista, tanto Gadd quanto a Netflix alegaram que todos os esforços foram feitos para garantir que a identidade dela não fosse revelada. Na verdade, no início da semana passada, em uma audiência no parlamento do Reino Unido sobre privacidade e a ética da narrativa com o Comitê de Cultura, Mídia e Desporto, o chefe de política da Netflix, Benjamin King, disse que a plataforma e a Clerkenwell Films -que produziu a série- tomaram “todas as precauções razoáveis disfarçando as identidades da vida real das pessoas envolvidas nessa história”. No entanto, outros discordam veementemente: Morgan sugeriu durante sua entrevista com Harvey que “o dever de cuidado da Netflix e de Richard Gadd foi um fracasso espetacular”. A NETFLIX FALHOU? Jake Kanter, editor de investigações internacionais do site Deadline, disse à BBC que, se Harvey foi usada para caracterizar Martha, “uma das coisas mais chocantes [que surgiram] da entrevista foi que ela não foi informada sobre a produção da série; que ela não foi avisada de que isso aconteceria”. “Mesmo que ela não tenha sido nomeada ou identificada diretamente, meu instinto é que uma emissora ou serviço de streaming e a produtora responsável teriam feito a devida diligência e informado aos indivíduos sobre a história a ser apresentada, assegurando-lhes que estavam tomando medidas para proteger suas identidades”, disse. “Se tivessem feito isso, estaríamos em uma situação um pouco diferente. Ela poderia ter levantado preocupações e eles poderiam ter sido capazes de abordar isso como parte do processo de produção e roteiro”, afirma. A importância do dever de cuidado e da devida diligência quando se trata de apresentar pessoas na TV tornou-se uma questão cada vez mais discutida nos últimos anos. Isto tem sido uma referência, entre outras coisas, aos reality shows, com uma discussão particular iniciada no Reino Unido sobre a série “Love Island”, da ITV, que introduziu novos procedimentos de cuidados em 2023; e recontagens de dramas de crimes reais, como o sucesso da Netflix em 2020, “Dahmer – Monster: Um Canibal Americano”, que foi criticado por ter sido feito sem o consentimento de qualquer familiar das vítimas. “Devida diligência é uma expressão que você ouve regularmente”, acrescenta Kanter. “E realmente significa estar preparado para o pior resultado possível. Eles [a Netflix] não estavam preparados, provavelmente não esperavam que fosse um sucesso tão grande, mas deveriam estar. É um trabalho surpreendente e incrivelmente memorável.” Ao lado de Harvey sendo alvo dos telespectadores, o diretor Sean Foley foi então falsamente acusado de ser a inspiração na vida real para o personagem Darrien, um escritor de comédias que repetidamente agride sexualmente o protagonista. Foley negou categoricamente isso e postou no X: “A polícia foi informada e está investigando todas as postagens difamatórias, abusivas e ameaçadoras contra mim”. Gadd postou no Instagram: “Pessoas que amo, com quem trabalhei e admiro (incluindo Sean Foley) estão injustamente sendo colocadas em especulações”. Embora Harvey não tenha especificado por que ela gostaria de processar Netflix ou Gadd, parece provável que seria por difamação, com base em suas alegações sobre a representação dela no programa, incluindo, entre outras coisas, a cena em que o personagem Martha é vista confessando no tribunal que é uma perseguidora e sendo mandada para a prisão por nove meses. Harvey diz que nunca foi condenada por nenhum crime. A questão é: ela tem um argumento jurídico forte? O especialista em direito da mídia Daniel Taylor, do escritório Taylor Hampton Solicitors, disse à BBC: “Cabe à requerente [Fiona Harvey] provar que ela foi alvo da difamação. Se ela for capaz de fazer isso, então o devido cuidado da Netflix falhou. O teste que o tribunal estabelece para saber se ela foi identificada como o sujeito da série é um teste objetivo para saber se o espectador hipotético entenderia que a série se referia a ela. No julgamento, podem ser apresentadas provas de que o indivíduo em questão era identificável.” “Se Fiona Harvey for identificável como o indivíduo retratado, então a Netflix será responsável pela forma como ela é retratada, independentemente do que está sendo alegado sobre ela ser verdadeiro ou falso”, acrescenta. “E, desde que a representação de Fiona Harvey seja falsa e difamatória e não haja defesa da verdade disponível para a Netflix ou qualquer outra defesa em que possam confiar, ela pode processar por difamação.” A BBC entrou em contato com a Netflix e a Clerkenwell Films para comentar, mas elas não responderam. QUESTÕES DE REGULAMENTAÇÃO Uma questão que todo esse caso destacou é a da regulamentação e dos padrões que os programas de TV seguem em diferentes plataformas. “Bebê Rena” é um programa produzido no Reino Unido e, se estivesse em uma rede de radiodifusão britânica, teria que obedecer ao Código de Conduta e Ética da Radiodifusão, que é supervisionado pelo órgão regulador de comunicação, Ofcom. Como a Netflix está sediada na Holanda, está sob a jurisdição do Dutch Commissariaat voor de Media, o órgão regulador local. Em entrevista ao jornal The Times, o coordenador de produção de Doctor Who, Russel T Davies, sugeriu que a BBC teria sido “muito mais rigorosa” ao disfarçar as identidades reais dos personagens: “A conformidade e a política editorial nos deixam loucos aqui, mas eu durmo à noite.” No entanto, os regulamentos para plataformas de streaming podem ficar mais rígidos em breve: um novo projeto de lei de mídia está sendo discutido no parlamento do Reino Unido e, caso aprovado, ele obrigaria a Netflix e outras plataformas a seguir o mesmo escrutínio do Ofcom a partir de 2026. De acordo com este novo projeto de lei, relata o site Deadline, as plataformas poderão em breve ser “multadas em até 250 mil libras (R$ 1,6 milhão) ou totalmente bloqueadas no Reino Unido se quebrarem as regras sobre material prejudicial que se aplicam às emissoras públicas há décadas”. O que complica ainda mais este caso específico é a legenda “esta é uma história verdadeira” que aparece na tela no início do primeiro episódio de “Bebê Rena”. A prática da indústria em torno de histórias da vida real adaptadas pela ficção costuma afirmar que “o que se segue é baseado em fatos reais” ou “inspirado em eventos verdadeiros”. A Netflix recentemente brincou com esse padrão novamente com “Inventando Anna”, de 2022, uma dramatização da história da “falsa herdeira” Anna Sorokin, incluindo uma advertência consciente: “toda essa história é completamente verdadeira… exceto por todas as partes que são totalmente inventadas.” Com “Bebê Rena”, no entanto, a plataforma afirma que é uma “história verdadeira” na tela, embora o próprio Gadd tenha explicado que usou alguma licença artística em algumas partes e que a verdade foi “ligeiramente ajustada para criar clímax dramáticos”. Harvey, ao dizer que é a verdadeira Martha, e que foi identificada como a personagem, alega que nunca perseguiu Gadd, atacou sua namorada ou cometeu qualquer uma das ofensas que Martha comete ao longo da série. Ela também afirmou nas redes sociais que nunca foi processada ou condenada: “Isso foi há 12 anos e não há nenhuma condenação”. Mas, de acordo com Taylor, mesmo que a Netflix e a Clerkenwell Films publicassem um aviso de que a série não era baseada apenas em eventos reais, ainda haveria um problema com Harvey sendo tão facilmente identificável porque não estaria claro para o público o que pode ser verdadeiro ou falso. “Uma isenção de responsabilidade não os cobriria necessariamente”, diz ele. Na verdade, no caso “Inventando Anna”, apesar de admitir na tela que algumas partes da história foram inventadas, a ex-fotojornalista da Vanity Fair Rachel DeLoache Williams, que aparece como personagem da série com seu nome verdadeiro, processou a Netflix pois ela acreditava que foi retratada “de forma negativa, gananciosa, esnobe e manipuladora”. Seu advogado, Alexander Rufus-Isaacs, explicou o processo no site Vulture. “O dano devastador à sua reputação poderia ter sido evitado se a Netflix tivesse usado um nome fictício e detalhes diferentes”. O caso ainda deve ser julgado e, em março de 2024, a Netflix perdeu uma ação para encerrar o processo. O chefe de política da Netflix, Benjamin King, manteve seu processo de conformidade na audiência parlamentar da semana passada, dizendo: “Não queríamos anonimizar [a coisa toda] ou torná-la genérica a ponto de não ser mais a história [de Richard Gadd] porque isso prejudicaria a intenção por trás do programa… Eu pessoalmente não me sentiria confortável com um mundo em que decidíssemos que era melhor que Richard fosse silenciado e não tivesse permissão para contar a história.” Sua declaração não percebeu as nuances da situação, acredita Kanter. “King apresentou uma escolha binária e enganosa de que a Netflix tinha; eles disseram que ‘criamos esta série de uma forma realmente autêntica’ ou ‘censuramos a história de Richard Gadd’. Acho que há um caminho no meio dessas duas coisas, e não acho que tenha sido particularmente útil para ele lançá-lo de uma forma tão rígida, porque eles poderiam ter permanecido fieis à sua história enquanto mudavam os detalhes.” É claro que o fato de a história de Gadd ser contada por ele mesmo, à sua maneira, não deveria ser proibido nem desprezado o direito de que qualquer artista de criar uma obra baseada em sua história pessoal. Mas, alguns diriam, ele deveria ter recebido mais orientação sobre como fazer isso. Certamente, sugere que a forma mais ampla como a indústria televisiva lida com as histórias sensíveis de pessoas da vida real precisa ser abordada para evitar que as pessoas sofram mais. Gadd sempre disse que não vê sua perseguidora como um “coelhinho”, mas é mais compassivo. Falando ao The Independent em 2019, ele disse: “Perseguição e assédio são uma forma de doença mental. Teria sido errado pintá-la como um monstro, porque ela não está bem e o sistema falhou com ela”. Mas ao contar a história de sua vida para a TV, será que o sistema também falhou com ele, expondo involuntariamente a mais traumas? “Richard também está claramente vulnerável”, diz Kanter. “E eu acredito absolutamente que ele também falhou. Esta é a sua obra de arte, mas, em última análise, um cínico poderia argumentar que ele também foi explorado.” E, após a entrevista de Piers Morgan, outra história surgiu no fim de semana. Laura Wray, que alega que Fiona Harvey também perseguiu ela e o seu falecido marido durante cinco anos, disse ao jornal Daily Mirror que obteve uma liminar contra a escocesa em 2002. Wray diz que ela foi acionada ao ver o programa. “Estou preocupada com o que ela poderá fazer a seguir. Ela virá atrás de mim?”, questionou. “Você não sabe onde isso vai acabar.” Ela também acredita que foi indiretamente apresentada em “Bebê Rena” por meio do aparecimento de uma manchete fictícia de jornal: ‘Perseguidora doente tem como alvo o filho surdo de advogado’. Com referência a Laura Wray, Harvey alegou na entrevista que não havia nenhuma liminar contra ela “já que a papelada estava confusa” -também negou a perseguição. Toda a situação da “Bebê Rena” sem dúvida terá repercussões para a Netflix e para toda a indústria de TV no que diz respeito à forma como as produções de ficção lidam com a vida real dos personagens retratados. No podcast The Rest Is Entertainment, os apresentadores Richard Osman e Marina Hyde discutiram os erros da série. “Acho que se você estivesse fazendo um programa agora para qualquer um dos streamings ou para qualquer pessoa que fosse sobre uma pessoa real, então esta semana sua conformidade provavelmente foi reforçada em 8.000%, acho que este (caso) será o paciente zero da conformidade da Netflix”, disse Osman. “Acho que Richard Osman acertou em cheio”, afirma Kanter. “Acho que tudo o que a Netflix tem em desenvolvimento será analisado com muito cuidado agora. Dito isto, acho que a Netflix deveria falar sobre isso com mais detalhes e como eles vão mudar os processos, acho que eles têm uma responsabilidade de fazer isso e se eles não estiveram em contato com Fiona, deveriam estar, e deveriam estar tentando chegar a uma situação em que todas as partes recebam a garantia e o apoio de que precisam para seguir em frente.” Quanto à posição de Gadd sobre a polêmica, em sua entrevista mais recente, ele disse ao The Hollywood Reporter: “Não posso confirmar ou negar nada relacionado às pessoas da vida real nas quais os personagens da série são baseados… Se eu quisesse que as pessoas da vida real fossem encontradas, eu teria feito um documentário.” Ele acrescentou: “Acho que nunca mais comentarei sobre isso”. Este texto foi originalmente publicado aqui.