A tragédia que ocorreu há 30 anos, na Rússia, é uma das mais estranhas –e evitáveis– da aviação mundial. A história mostra como até acidentes causados por erros flagrantes servem para melhorar processos no setor. Com base no relatório final da investigação do acidente, foi possível reconstituir o que houve a bordo. O voo Aeroflot 593 partiu na noite de 22 de março de 1994 do aeroporto internacional de Sheremetyevo, em Moscou, com destino ao aeroporto de Kai Tak em Hong Kong. O modelo utilizado para a rota era um Airbus A310, “um ótimo avião”, segundo Jorge Leal Medeiros, piloto, engenheiro aeronáutico e professor da Escola Politécnica da USP. Ele mesmo já chegou a atuar como engenheiro de operações de voo de um modelo semelhante, o A300. Muito popular na época, o A310 era um dos mais modernos da Aeroflot, cuja maior parte da frota era composta por equipamentos produzidos pela União Soviética. O modelo é capaz de transportar até 240 pessoas, dependendo da configuração de cabine, e fazer voos de longa distância. Hoje, quase não é mais usado; segundo o site Simple Flying, apenas duas companhias aéreas do Irã e uma do Afeganistão seguem voando com esse modelo. Na rota para Hong Kong, prevista para durar quase 14 horas, três pilotos seriam responsáveis pelo voo. Todos eles tinham experiência no modelo e se revezariam, para não ultrapassar o limite de jornada de trabalho. A aeronave não apresentou nenhum tipo de problema e seguiu em voo de cruzeiro, durante a madrugada, quando o comandante Andrei Danilov foi descansar na primeira classe e cedeu seu lugar para Yaroslav Vladimirovich Kudrinsky, que assumiria o lugar de piloto na cabine de comando. Cinco pessoas na cabine Havia um terceiro piloto da Aeroflot na cabine de comando, que estava viajando como passageiro e pediu para o comandante para acompanhar o voo do “jump seat”, um assento retrátil que fica atrás dos bancos de piloto e copiloto. Pouco após assumir os controles, Kudrinsky convidou mais duas pessoas para acessar a cabine de comando: os seus próprios filhos, Yana e Eldar, que estavam acompanhando o pai em um voo internacional pela primeira vez. “É importante notar que, naquela época, a cabine de comando não era considerada um ambiente estéril”, aponta Medeiros. “Era muito comum qualquer passageiro pedir para visitar o local. Eu mesmo já fiz isso quando era estudante, nos anos 70.” O conceito de esterilidade da cabine –tornar o local um ambiente praticamente isolado do resto da aeronave– só se tornou regra após os atentados de 11 de setembro de 2001. Naquela ocasião, terroristas sequestraram aviões, invadiram as cabines com facilidade e assumiram o controle das aeronaves, forçando uma revisão de todos os processos de segurança do setor. Destroços do voo Aeroflot 593, caído sob a neve na Sibéria — Foto: Reprodução Num primeiro momento, havia cinco pessoas no pequeno espaço da cabine, em um ambiente propício à distração. A primeira falha grave, porém, acontece quando Kudrinsky convida sua filha Yana, de 13 anos, a se sentar no assento do comandante, do lado esquerdo da cabine, que ele ocupava até então. Colocar uma pessoa não capacitada no comando, naquela posição, já constituía uma violação de conduta das normas da Aeroflot e dos manuais de segurança da aviação comercial da época. Em nenhum momento Kudrinsky passa os controles para o copiloto, Igor Piskarev, sentado do lado direito. Piskarev segue responsável pela comunicação por rádio e monitoramento. Um detalhe importante é que, enquanto os cinco conversam, Piskarev coloca o seu banco totalmente pra trás, de forma que ele fica longe dos comandos do avião. Ainda assim, aviões comerciais voam em piloto automático na maior parte do tempo —do pós-decolagem até os momentos próximos ao pouso. Era o caso do A310: com o Airbus em piloto automático, a adolescente Yana apoia as mãos sobre o manche —o comando que, movido para frente e para trás, controla os movimentos do avião. “Você vai pilotar? Vá em frente, assuma os controles”, diz Kudrinsky para a filha. O piloto realiza então um segundo desvio grave de conduta. Para dar a impressão de que sua filha está controlando a aeronave, ele aciona o modo “heading select” (seleção de direção) do piloto automático em um botão à sua frente e ordena uma curva de 20º de inclinação para a direita. A manobra coloca o voo levemente para fora de sua rota planejada, de maneira desnecessária. Yana chega a exercer uma pressão de 2 kg a 4 kg sobre o manche, considerada desprezível pelo piloto automático. Kudrinsky explica aos filhos como funciona o “heading select”. A filha permanece 7 minutos e meio sentada no lugar do piloto, enquanto a tripulação conversa, sem prestar atenção nos parâmetros de voo. Comando involuntário Chega a vez de Eldar, de 15 anos, o filho mais velho de Kudrinsky, ser convidado para o assento onde estava a irmã. A conversa registrada pela caixa-preta, incluída no relatório final do acidente, indica um clima bem-humorado na cabine. O piloto convidado, Makarov, chega a tirar uma foto ou filmar o adolescente. Eldar, então, pergunta se pode repetir a manobra da irmã e “virar” o manche do avião: — “Posso virar aqui? O controle?”. — “Sim”, responde Kudrinsky. “Fica de olho, nós vamos virar. Vai pra esquerda, gira pra esquerda!.” Kudrinsky repete, então, o procedimento do “heading select” que realizou com Yana. Há uma diferença desta vez, que se provou fatal. Ao contrário de sua irmã, Eldar aplica uma força considerável no manche, de cerca de 10 kg. Quando seu pai muda a direção da curva para a esquerda, para retomar a rota planejada, Eldar aplica mais força ainda no manche. Ele segue aplicando cerca de 13 kg ao fim da manobra. Essa força é suficiente para ser notada pelo computador de bordo do Airbus. Quando o computador percebe que o piloto está aplicando alguma força contrária à orientação do piloto automático, ele é programado para devolver a autoridade à tripulação e desligar o piloto automático, pois isso é entendido como a sinalização de que há uma situação não planejada no voo. Essa transição costuma ser óbvia para os pilotos, pois ela vem acompanhada de um aviso sonoro e uma mensagem no painel principal. Mas, devido a uma peculiaridade do Airbus A310, a força empregada por Eldar não foi suficiente para desligar o piloto automático por completo; só o controle da inclinação do avião em relação a seu próprio eixo. Nesses casos, não havia alerta sonoro ou visual indicando a transição do modo de voo. Um piloto perceberia essa transição facilmente, porque sentiria o manche do A310 mais “duro” – mas Eldar era um adolescente de 15 anos, sem treinamento para pilotar uma aeronave. Piskarev, a seu lado, mesmo que estivesse com as mãos no manche do seu lado, tinha 1,60 metro de altura e estava com o banco completamente para trás, de forma que não perceberia a resposta dos controles normalmente. Sem que ninguém da tripulação perceba, a asa esquerda começa a se inclinar para cima lentamente. O áudio da cabine indica que, distraídos com as visitas, ninguém monitorava os instrumentos. Kudrinsky conversava com sua filha, e o primeiro a notar uma anormalidade é o próprio adolescente. “Por que ele está virando?”, Eldar pergunta. “Está virando sozinho?”, questiona o copiloto, Piskarev. “Está virando para a área [de espera]”, opina Makarov, que não fazia parte da tripulação. ‘Segura! Segura!’ Os pilotos parecem pensar que a aeronave entrou em um padrão de espera usado perto de aeroportos. O padrão de espera acontece, por exemplo, quando há congestionamento na chegada de um aeroporto e os aviões passam a voar em círculos, numa área próxima, à espera da vez de aterrissar. A tripulação não percebe o desligamento parcial do piloto automático. O que ninguém da tripulação percebe é que a aeronave continua inclinando, a ponto de exceder os 45º, o máximo do limite operacional do Airbus A310 —acima desse ângulo, o avião pode ficar numa posição irrecuperável e cair. O piloto automático segue controlando os outros parâmetros de voo, inclusive a altitude programada – mas, para tentar manter a aeronave no trajeto, ele realiza correções extremas. Até este momento, nenhum alarme soou na cabine. O avião finalmente passa a perder altitude, e a força G chega a 1,6 (ou 60% a mais que a força da gravidade). Kudrinsky grita “Segura! Segura!”, o que faz seu filho segurar o manche na posição. Ele queria, na verdade, que os pilotos “segurassem” o ângulo de inclinação, mas Piskarev não estava bem posicionado para controlar seu manche, e Eldar não tinha conhecimento da fraseologia da aviação para notar o real significado da expressão. A partir daí, a situação passa a se deteriorar rapidamente na cabine de comando. A asa esquerda do avião aponta quase 90º em direção ao céu, e a aeronave entra em “estol”, ou seja, perde a sustentação e começa a cair. Os ocupantes sentem uma trepidação característica, e as forças aplicadas ao manche finalmente fazem o piloto automático desligar completamente. Kudrinsky passa a gritar com filho Eldar, em desespero. Assim como no caso do voo 447 da Air France, os pilotos não haviam recebido treinamento em simulador de recuperação de estol em altitudes elevadas. O Airbus cai em alta velocidade e, assim que Piskarev parece recobrar a consciência situacional, ele puxa o nariz do avião para cima, o que faz a força G chegar a 4,6. Kudrinsky tenta assumir novamente o assento do comandante, mas nem ele nem Eldar conseguem se mover. “Sai daí!”, ele exclama para o filho. Parafuso e golpe fatal A aeronave chega a recuperar a altitude e a força G diminui até chegar a quase zero, permitindo que Kudrinsky finalmente troque de lugar com Eldar, mas a subida repentina faz com que o avião perca muita velocidade. A última fatalidade do voo Aerolflot 593 acontece justamente na hora em que Eldar levanta do banco e seu pai senta. No momento da troca, um dos dois aciona o pedal esquerdo de forma não intencional. Os pedais controlam o estabilizador, que ajuda a controlar o avião e fica posicionado na cauda. O toque leva a aeronave a girar e cair novamente, com o nariz para baixo. Existia uma possibilidade de que a própria aerodinâmica do avião corrigisse a trajetória caso os comandos fossem deixados em posição neutra, mas um dos pilotos tenta puxar o nariz para cima, e um novo toque no pedal é registrado. O avião entra em parafuso e, depois de ter perdido muita altitude, ele está a cerca de 300 metros do solo. Já não há mais nada que possa ser feito para salvar a vida dos ocupantes. A colisão contra as montanhas na Sibéria aconteceu apenas 3 minutos e 15 segundos depois que Eldar assumiu o assento do comandante. Desastre do voo Aeroflot 593 — Foto: Editoria de Arte/g1 Lições Muitas das regras de acesso à cabine de comando foram revistas, assim como o treinamento de pilotos para recuperação de estol. A investigação do acidente, conduzida pelas autoridades russas, levou a uma série de recomendações para que uma tragédia semelhante não se repetisse. Mas, embora o acidente tenha sido decorrente de uma irresponsabilidade flagrante do piloto, o relatório final apresentou mudanças a serem feitas até pela Airbus: ele pediu que os fabricantes inserissem alarmes mais óbvios para desativação parcial de piloto automático e de inclinações excessivas. Jorge Medeiros afirma que esse procedimento, de apontar todas as brechas que levaram a um desastre, mesmo as que não foram determinantes para a queda, é padrão no setor: “A preocupação, na aviação, é fazer com que a segurança evolua constantemente”.
Aeroflot 593: o voo internacional que caiu na Sibéria porque o comandante deixou o filho de 15 anos pilotar o avião
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