Rio de Janeiro No Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, comemorado nesta quinta-feira (29), é difícil pensar em um nome mais potente do que o da cantora e compositora Angela Ro Ro para ilustrar o tema e falar sobre o assunto. Ro Ro foi a primeira artista feminina a assumir publicamente, e sem grilos, sua orientação sexual, lá nos primórdios anos 1970. “Sou uma lésbica diamante desde sempre”, disse, ao F5. Indagada sobre a associação com a pedra preciosa, ela explica: “É quando você não escorrega, quando você é apenas homossexual, e não sai desse parâmetro sexualmente”. Hoje com 45 anos de carreira em pouco mais de sete décadas intensamente vividas (em todos os sentidos), sua trajetória pessoal e profissional inclui momentos e eventos marcantes, algumas vezes estampados em jornais populares do passado. O pioneirismo ao sair do armário (em que, aliás, nunca esteve), ainda em tempos de repressão, custou caro à artista. “Foi barra, sofri muitos ataques homofóbicos, como existem até hoje”. Ela também relembrou alguns episódios de violência; um deles em 1984, quando saia de um restaurante com duas amigas, em Mangaratiba (RJ). “Fui espancada quase até a morte, os três se identificaram como milícia, me bateram com diversas armas brancas, soco inglês, taco de sinuca, e um deles, tentou me currar, me abusar”. Ela rememora a cena, descrevendo em detalhes, inclusive a roupa que usava (macacão e salto alto). As agressões resultaram na perda da visão do olho direito. Durante a conversa, realizada por telefone a pedido da artista entre uma sessão e outra de fisioterapia, Angela fala sobre os mais diversos assuntos, sempre com um humor sarcástico e inteligente. Questionada sobre como se descobriu lésbica, ela puxa pela memória e se recorda da infância. “Já gostava de mulher desde os seis anos, adorava as vedetes, era fã da Virginia Lane [1920-2014], e tinha tesão nas mulheres desde essa idade”. Revivendo a infância e carreira respeitável Nascida em uma família de classe média de Ipanema, filha única, quando criança era gordinha, tinha um dente quebrado, e ‘pés pra dentro’, segundo sua própria definição. Aos nove, já tocava piano clássico, e foi nessa idade que foi abusada sexualmente por um tio: “Fui atacada. Como não teve ereção, ele ficou irritado. Foi o primeiro pênis que vi na minha vida. Podia ter visto coisa melhor, aquele treco era realmente deprimente”, diz, séria. E completa: “Com raiva da impotência, ele pegou objetos e me perfurou no reto. Calei minha boca até os 27 anos. Parte da família não me deu apoio, e ele continuou a frequentar a nossa casa”. A artista conta o desfecho, revelando que logo depois seu algoz teve Parkinson, e era ela quem servia seu uísque e acendia seu cigarro quando ele não tinha mais condições de fazer isso. Ro Ro esclarece que o abuso não tem nenhuma relação com a sua orientação sexual. “Uma coisa foi aliviadora: saber que a minha tendência a ser lésbica era bem antes do abuso sofrido. Portanto, lésbica diamante desde sempre. E o resto passou, vamos em frente, é duro, mas não fiquei torta da cabeça por isso”, revelou. A vida amorosa de Ro Ro sempre foi enérgica e também dramática, assim como suas aclamadas composições. Seu álbum de estreia levava seu nome e foi lançado em 1979 —um sucesso de público e crítica, com hits autorais como “Amor, Meu grande Amor” e “Gota de Sangue”, gravado antes pela sua madrinha de carreira, Maria Bethânia, para o LP “Mel”. Musa inspiradora de Cazuza e Frejat em “Malandragem”, sucesso na voz de Cássia Eller; na ocasião, Angela recusou gravá-la porque seu disco ‘Prova de Amor’ (1988) já estava com o repertório fechado, e também porque achou que a letra não tinha a ver com ela. Hoje a música é quase obrigatória em seus shows, além de ter se identificado com a canção. Entre 1979 e 2017, foram dez álbuns lançados, incluindo três ao vivo. Em 2012, foi considerada a 33ª maior voz da música brasileira pela revista “Rolling Stone”. Amigo de longa data, Roberto Frejat falou sobre a cantora ao F5, “É uma coisa impressionante como ela vai amadurecendo, se aprimorando, fiquei extasiado nos últimos shows dela, e acho que a minha parceria com Cazuza seria muito diferente se não existisse a Ro Ro” elogia. “Ela tem o blues e a MPB dentro dela, e consegue unir ambos; além de ser uma excelente compositora e pianista, apesar de se subestimar como pianista, e canta maravilhosamente bem, e cada vez melhor”, derrete-se o ex-líder do Barão Vermelho. Sua versatilidade também já foi revelada à frente do talk show Escândalo, nos anos 2000, no Canal Brasil. Uma autobiografia está a caminho, assim como um documentário —uma equipe de filmagem já fez alguns registros em sua casa na Região dos Lagos, no Rio, há poucos anos, mas ainda tem material para rodar. A cantora diz que, por preguiça, tem postergado ambos os projetos e, fazendo um sotaque baiano em homenagem ao pai, declara, aos risos: “Descrevo a minha preguiça dessa forma: ‘Angela por que você tá deitada na esteira?’ Aí respondo: ‘porque subir na rede dá trabalho, pai’”. Os intensos anos 1980 e a nova fase A década de 1980 não foi fácil para ela, seu nome esteve atrelado a confusões, quase sempre ligados à vida pessoal. O talento algumas vezes deu lugar as polêmicas que renderam manchetes em publicações da época, como o conturbado término do relacionamento de um ano e meio com Zizi Possi em 1981, um prato cheio para revistas de fofoca. O epílogo foi, digamos, “escândalo”, nome de um dos seus memoráveis álbuns. Ironicamente, a placa de seu carro na época, um Puma vermelho, era: ‘ZZ’-0690. Perguntada se hoje é mais fácil esclarecer rumores usando a força da internet, ela acredita que não. “Desfazer um boato é muito difícil, já fui vítima de um monte de calúnia, que até hoje persistem em prorrogar por omissão até de pessoas que conviveram comigo”. Ela continua: “ao invés de dizerem ‘não, a Angela nunca me deu porrada, nunca me bateu’, tem pessoas que preferem ser omissas; tenho pena delas. A omissão não foi feita para a minha boca”. Após décadas de excessos, Ro Ro conta que abandonou todos os hábitos nocivos (como prefere chamar os antigos vícios) aos 50 anos, em 1999; adotando um estilo de vida mais saudável. “Os anos 1990 foram barra pesada, me envenenei, e largar o cigarro foi das coisas mais difíceis, mas larguei tudo”. Ela conta que começou fazendo caminhadas, depois pedalando toda zona sul carioca e fazendo regime. resultado: de 140 kg foi para menos da metade disso em três anos. “Sou uma velhinha sem musculatura delineada, porém, gostosinha, macia e pesando 60 kg. É meu peso de sempre em um 1,69 m”, diz orgulhosa, ressaltando que roupas compradas há 15 anos continuam lhe servindo. O humor é o irmão mais inteligente do amor Se a intensidade fez parte da sua vida no passado, hoje ela se diz serena, até nos momentos mais difíceis. Durante a pandemia, a grana encurtou e ela enfrentou uma crise financeira ‘passando o chapéu’ nas redes sociais. Passou. Atualmente, celebra uma agenda de shows, um deles já lotado para o início de setembro, em São Paulo. Vivendo entre Saquarema, na Região dos Lagos, e o Rio de Janeiro, ela preferiu não dar detalhes sobre a vida amorosa, mas comentou sobre o sexo na maturidade. “Não é que seja melhor após os 60, não é isso que quis dizer, depois dos cinquenta e tantos, eu comecei a me libertar um pouco mais, mas isso é uma coisa minha”. Ela lembra da época em que era um símbolo sexual: “No início da carreira, as pessoas me achavam assim… ‘ah, a boa de cama’. É… eu cochilo bem, durmo bem; na verdade, rapaz, brochei muito com mulheres lindas, a minha vida inteira, na juventude”, diz, sem perder o humor. Sobre as novas formas de amar, como o poliamor, ela se diz careta. “Mulher é um bicho difícil, é gostoso, mas é muito difícil, já imaginou mais de uma? Não dá, gosto de me concentrar em uma só, a pessoa quer fazer? Faça! Mas não me convide (risos)” Aos 74 anos, Angela Ro Ro não quis comentar alguns assuntos ou episódios pregressos, como a fama de temperamento forte que sempre a perseguiu. Indagada sobre um etarismo artístico, ela faz uma reflexão sobre o tema no âmbito feminino. “Noto uma misoginia nesse etarismo com as mulheres. O homem pode ficar lindo aos 70, charmoso aos 80, já a mulher aos 40 é tida como coroa; querem que as mulheres sejam aceitas só quando são ninfetas, isso é patético”. Regida por sagitário (ela prefere o termo ‘sagi-otária’), a artista vive a placidez da ‘melhor idade’; sobreviveu ao ‘clube dos 27’ (uma expressão sobre uma suposta maldição de músicos mortos aos 27 anos, como Amy Winehouse, Kurt Cobain e Janis Joplin), à ditadura, aos vícios, à obesidade, à pandemia, e segue atuante, sem pensar sobre a morte e muito menos em se aposentar. Ainda sem previsão de lançamento, o futuro documentário promete desnudar a vida e obra de Angela Maria Diniz e Angela Ro Ro: “Sendo uma pessoa tão polêmica, para não dizer caluniada, difamada, há décadas, tá na hora de falar um pouco e, cá pra nós, não existe pessoa que conheça a mim melhor do que eu, sem dúvida alguma”. Só nos resta viver —para assistir.
Mulher é um bicho gostoso, mas é muito difícil, diz Angela Ro Ro
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