O manancial que leva o nome de Piracicaba (SP), cidade que se desenvolveu em torno dele e que completa 257 anos nesta quinta-feira (1º), foi o tema do doutorado do antropólogo Fernando Camargo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que resultou na pesquisa intitulada “Vida, escrita e transbordamentos: biografia e etnografias do Rio Piracicaba/SP”, defendida no ano passado. Camargo explica que os rios nos informam sobre elementos biográficos o tempo todo. “Tem as suas nascentes. E, quando comecei a pesquisar, também via que a todo tempo anunciavam uma ideia de morte do rio”, observa o antropólogo, devido às baixas vazões, secas, mortandade de peixes e demais organismos. “Então, pensei em construir um biografia do Rio Piracicaba , mas diferente daquele padrão de biografia tradicional, com uma linha do tempo do nascimento até a morte. Para mim, a biografia não essa coisa que estamos acostumados a identificar como algo que tem um começo, um desenvolvimento e uma morte. A potência da biografia não é isso. É até uma parte da vida de alguém, mas é mais que isso, extrapola. Ela é a forma de grafar a vida. Por isso, optamos pelo atlas, que permite esse movimento fluído e constante, assim como o rio”, explicou. Fernando Camargo mostra como foram pensados as constelações e verbetes para composição do atlas biográfico do Rio Piracicaba. — Foto: Claudia Assencio/g1 Da experiência de infância com o pai biólogo, começou o interesse de Fernando Camargo pelo Rio Piracicaba e seu entorno. O manancial continuou a fazer parte da trajetória acadêmica do antropólogo. No doutorado, desenvolveu o que chamou de atlas biografia do manancial, composto por 14 verbetes organizados em quatro constelações: Transbordamento, Comunicação, Controle e Assombração. Por meio dessas constelações, o pesquisador pretende que o leitor estabeleça novas relações com o Rio Piracicaba. – 👇Entenda mais sobre cada uma, abaixo, na reportagem. “O objetivo foi compor uma biografia com o rio Piracicaba. A vida do rio, bem como suas grafias serviram de “fio condutor” para estabelecer relações com instituições, políticas, mundos e visões de mundo. A forma de construção e apresentação das imagens na pesquisa são expressões da e na vida desse rio, e foram fundamentais para fazer esse estudo transbordar da denúncia, de um mundo que se encontra danificado, para a composição de novos mundos com esse mundo”, descreve na página dedicada à pesquisa. Atlas Biografia do Rio Piracicaba na versão digital — Foto: Reprodução/ A produção do atlas, em si, ocorreu de maneira física, por meio das sobreposições de imagens, fotografias e desenhos em cartolinas e cartões, explicou o autor. Depois também foi transposta para o digital, no site, para que mais pessoas pudessem ter acesso ao trabalho, na busca de contemplar ainda a importância da divulgação científica. No futuro, segundo Camargo, a ideia e dar continuidade ao projeto para que o site possa ser colaborativo. “Assim, as pessoas poderão contribuir com suas histórias e acontecimentos com o rio. Isso deverá passar por uma curadoria para que possam compor esse site”, ressaltou. Conheça as constelações Transbordamento: “O sentido desse termo vai além das cheias em si, tem relação com os efeitos dos acontecimentos. O transbordamento não necessariamente é uma cheia do rio. Uma seca também é um transbordamento. Onde as vidas se confundem. Os encontros das vidas transbordando”, comenta. Assombração: “Aquilo que assombra a vida do rio. Tem a ver com a figura de um fantasma que é do passado, mas habita o presente. O fantasma não é necessariamente ruim, mas causa um incômodo. A assombração, no termo da pesquisa, é aquilo que vai incomodar, mas também provocar uma reflexão”, explica o antropólogo. “Quando olhamos os Bonecos do Elias, por exemplo, que é um elemento de assombração, podemos ficar um pouco desconsertados, não sabemos se são de fato pescadores. Ao longe. Se não são pescadores, onde estão esses pescadores, por que não estão mais aqui?”, questiona. Atlas do Rio Piracicaba é composto de quatro constelações chamadas de Assombração, Transbordamento, Controle e Comunicação. — Foto: Claudia Assencio/g1 Comunicação: “As relações que procuram um diálogo com o rio. A festa do divino é um exemplo interessante disso porque ela acontece em um período proposital quando águas estão mais calmas. Há uma negociação com o rio o tempo inteiro. Não é uma negociação fácil porque, às vezes, o rio invade as casas desses moradores próximos e causa um dano. Mas, ao mesmo tempo eles dependem do manancial. Durante a festa, ocorrem pedidos para o rio e se devolvem coisas para o rio”, define. Controle: “Nesse verbete, tentei trazer aquilo que são as tentativas de controlar o rio. Elementos externos ao rio provocados, especialmente por humanos, como o de tentar limitar até onde o rio vai, de controle e dominação das águas, da vazão. O Sistema Cantareira é um exemplo disso. O projeto Beira Rio, em si, saiu do lugar da comunicação, do diálogo, em que poderia estar, para entrar no lugar do controle porque passa a focar na comercialização do peixe, que não é pescado no rio. Mas, é comido à beira do Piracicaba, na instalação de decks de madeira que tira a condição de barranco do rio, onde ficariam os pescadores”, critica. Rio Piracicaba ganha biografia em pesquisa de doutorado pela Unicamp. — Foto: Claudia Assencio/g1 Trajetória do pesquisador A vida de pesquisa de Camargo com o rio não começou no doutorado, tão pouco se limita a ele. Ainda criança, Camargo já era influenciado pelo tema das águas partir do trabalho do pai, biólogo e professor da Unesp, no campus de Rio Claro (SP). “Desde criancinha, acompanhava meu pai nas pesquisas dele com Rio Itanhaém, no litoral, e coletas dele com água e plantas aquáticas. Então, ajudava a coletar as plantas. Sempre me interessei muito pela questão das águas, dos rios desde pequeno”, recorda-se. Barcos da 189ª Festa do Divino Espírito Santo de Piracicaba — Foto: Claudia Assencio/G1 O percurso acadêmico de Fernando Camargo também esteve atrelado ao cenário do Rio Piracicaba. Ainda na graduação em ciências sociais, optou por pesquisar sobre a centenária Festa do Divino de Piracicaba, registrada como patrimônio imaterial do município, que ocorre há ano à beira manancial que leva o nome da cidade. “O Rio Piracicaba já estava ali me mostrando coisas. Depois, na especialização em gestão cultural, pesquisei o projeto Beira Rio. No mestrado, dei foco aos pescadores que habitam às margens do Rio Piracicaba. […] Participei de um grupo de pesquisa em antropologia visual, comecei fotografar o rio e me interessar por essa construção imagética. Achei fantástico esse lugar da fotografia”, conta. As imagens do Atlas Biográfico do Rio Piracicaba foram feitas por Fernando Camargo e Laura Lino. No doutorado, já iniciado em práticas que uniam a antropologia visual, fotografia e linguagem verbal. “Entrei em uma linha de pesquisa que estudava trajetórias e vida e pensei: ‘como seria construir uma biografia do rio?’. Se o rio tem um vida, como eu poderia demonstrar a trajetória desse ser?”, se perguntava. Assim, na busca por respostas a essas perguntas que o pesquisador chegou a ideia de fazer um atlas biográfico. “Você não precisa entrar em um atlas no início dele. Pode começar sua busca pelo item ao qual tem mais interesse. O objetivo era o de descontruir essa visão mais tradicional de biografia, linha de temporalidade, de início, desenvolvimento e fim. É justamente possibilitar o pensamento de que não tem um começo delimitado nem um fim”, conclui. Escavadeira atua no ponto próximo ao desemboque do ribeirão do Enxofre na Avenida Jaime Pereira em Piracicaba. — Foto: CCS/Prefeitura de Piracicaba VÍDEOS: Tudo sobre Piracicaba e região
Antropólogo faz biografia do Rio Piracicaba para mostrar as relações da cidade com manancial
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